Dos eventos musicais de 2024 que aguardava com mais entusiasmo, o regresso de Clairo aos discos era tudo o que menos contava fazer parte dessa lista. Logo após ter lançado Sling (2021), Claire Cotrill admitiu numa entrevista ao The Guardian que iria fazer uma pausa na sua carreira para dar prioridade à sua vida pessoal. Foi nesse momento que pensei que não iríamos ouvir falar da jovem compositora por muito tempo. No entanto, três anos depois, aqui está ela. E em Charm (2024) escutamos uma Clairo diferente. Canta com discernimento e honestidade sobre a complexidade das suas relações amorosas num cenário adornado por sons analógicos inspirados pelas cantautoras dos anos 70 como Joni Mitchell ou Carole King. A Clairo de Charm não é a mesma que outrora foi intitulada uma das principais caras do boom de bedroom pop da segunda metade da década de 2010. Ou será que é?
Tudo começou num quarto de dormitório quando a universitária Claire Cottrill decidiu aplicar a fórmula do bedroom pop. Primeiro, o Youtube, um ukelele e um sonho – Metal Heart (2015); e depois a imagem a qual Claire Cotrill ficou associada durante anos: um quarto + um Macbook, uma adolescente a cantar sobre querer ser uma “Pretty Girl”. Corria o ano de 2017 e a viralidade do videoclipe de “Pretty Girl” transformou Clairo numa das caras do bedroom pop e da estética soft girl que passava a dominar o indie. Ao lado de nomes como Frankie Cosmos, mxmtoon ou beabadoobee, Clairo utilizava a sua melancolia e criatividade para conquistar o seu espaço.
Depois de ter juntado outros singles a “Pretty Girl” para criar seu EP diary 001 (2018), em 2019 Clairo foi para estúdio para gravar aquele que seria o seu álbum de estreia, Immunity. Co-produzido com Rostam Batmanglij, antigo membro e fundador dos Vampire Weekend, o primeiro longa-duração de Clairo narra a sua descoberta da bissexualidade, pintada por uma trilha sonora indie rock. Embora não tenha sido um disco do qual tenha ficado inteiramente fã, nunca me vou esquecer como as faixas drásticas e viciantes de “Bags” e “Sofia” foram a banda sonora de vários adolescentes – eu incluída. Em 2021 lançou Sling, o disco que iria colocar a sua carreira em suspenso. Numa entrevista com Matt Wilkinson à Apple Music, Clairo confessou que esses foram tempos difíceis, onde foi confrontada com fortes problemas por não se distanciar o suficiente do trabalho, prejudicando a sua vida pessoal: “Um dos maiores obstáculos para que conseguisse fazer estas coisas foi perceber quando é que a digressão acabava? (…) Será que vou ter alguma pausa quando a digressão acabar? Ou vou esgotar-me a um ponto em que estou constantemente a trabalhar até já não gostar de música?”, disse.
A ideia de se subjugar à indústria não correspondia a Claire, e as más experiências com editoras acabaram por envenenar a sua motivação e paixão pela composição. Por pouco não pôs fim à sua carreira: “Nunca me quis sentir completamente presa ao facto de ser apenas uma artista. Gostaria de aprender mais sobre mim própria enquanto ser humano e a música tem sido a minha vida. (…) Estou a duvidar um pouco da minha carreira”, confessou na mesma entrevista. Através das frustrações e introspecções de Clairo, o produtor Jack Antonoff espremeu todo esse sumo num folk melancólico e minimalista, que apesar do pouco reconhecimento atribuído se tornou num dos trabalhos mais interessantes de Clairo até esse momento e num dos discos onde a produção espaçosa de Antonoff permitiu às canções brilharem. Mas, sem que a artista se apercebesse, em Sling escutava-se as primeiras notas da “nova” Clairo.
Em maio deste ano, ouvimos falar do desconhecido Charm através dum anúncio nas suas redes sociais. Um mês depois, ouvíamos a primeira amostra deste seu terceiro projeto, “Sexy to Someone”, onde a jovem compositora já demonstrava que voltava com outro propósito e outra maturidade, apesar do regresso ter sido inesperado. Numa outra entrevista a Matt Wilkinson, contou que todo o processo do disco surgiu de forma orgânica e “saudável”, motivado apenas pela admiração que tinha pelo trabalho de Leon Michels, líder musical do grupo de soul El Michels Affair e de projetos como Sharon Jones and the Dap-Kings ou Menahan Street Band. Leon Michels co-produziu Charm e Clairo assume que o seu co-produtor e agora também amigo mudou “totalmente” o “rumo” da sua vida. A estética e sonoridade de Charm é o resultado de uma conjugação de referências da jovem compositora e do aclamado produtor, que juntos criaram o seu próprio ambiente à la anos 70 feito a rigor, desde a gravação em fita até à execução ao vivo. É um casamento entre a liberdade pintada pelo soul, jazz e a melancolia do folk, fortemente influenciada pelos ornamentos do seu anterior disco Sling.
Em Charm, escutamos uma harmonizante trilha sonora que faz as letras soarem ainda mais vulneráveis e ricas. Em “Pier 4”, Clairo relembra-nos que o amor é algo complexo e oscilante (“What’s the cost of it, of being loved? / When close is not close enough”); em “Second Nature” ou “Juna”, esta última com trompete de boca a acompanhar, canta sobre a ocorrência de conexões que despoletam coisas dentro de nós que não sabíamos estarem lá; em “Sexy to Someone” ou “Nomad”, canta sobre a sensação de querermos ser desejados por alguém e de não nos deixarmos consumir pela solidão. E, sem darmos por isso, já estamos dentro deste seu universo: num momento sentimo-nos sexys e carentes, noutro introspectivos e nostálgicos sobre os erros cometidos nas nossas antigas relações.
Tudo isto faz com que este disco seja o mais completo e tão Claire Cottrill. Todavia, é importante não esquecer que foi preciso a artista deixar de trabalhar para o mainstream para encontrar o seu caminho, embora o estatuto conquistado com Immunity e os singles “Pretty Girl” e “Bubble Gum” nunca a faça desaparecer da memória coletiva. Ainda antes de Chappell Roan aparecer em grande plano a falar sobre o assunto, já Clairo manifestava o seu desagrado relativamente aos tops e às exigências ditadas pelos managers. Acredito que este tipo de exemplos são os que fazem a indústria repensar novos formatos e estratégias de forma a não criar o distanciamento destes jovens criativos e irreverentes. Num caminho tão versátil e acelerado, foi necessário que Clairo parasse e reencontrasse o seu propósito no domínio da música. Tal como diz o ditado, “the third time’s the charm”; e foi ao terceiro álbum que Clairo encontrou a sua verdadeira essência.