A cor regressou aos relvados. O vislumbre da janela já não tende a ser tão melancólico e húmido. Vemos aquele céu azul adornado de um solinho morno que nos convida a tirar os casacos e a deambular por entre as alergias e a jovialidade risonha que esta estação nos traz. Felizmente, o equinócio não fez chegar a beleza primaveril somente à natureza, pois basta olharmos para os campos musicais para ver que neles também muita flor bonita por lá brotou.
Março despede-se de nós, mas ao menos fá-lo sabendo que nos deixou de barriga cheia de bons lançamentos. Tivemos slowthai com o seu eclético terceiro disco, Yves Tumor a continuar a puxar os seus psicadelismos, os Black Country, New Road a reinventarem-se ao vivo no Bush Hall, Liturgy de regresso e ainda – merecedor de destaque – a fusão imaculada de JPEGMAFIA e Danny Brown a revelar-se um disco capaz de ocupar púlpitos nas listas de final de ano. Além disso, Slow J chegou ao COLORS e o mês só acaba (hoje) quando as boygenius se estrearem nos longa-duração. Porém, as atenções playbackianas centram-se num regresso valioso de uma das duplas mais interessantes, importantes e positivamente bizarras que tivemos o prazer de ver chegar na década passada: os 100 gecs, que nos trazem 10,000 gecs.
Para quem andava pelas lides do discourse musical na Internet na segunda metade da década de 2010, os 100 gecs, duo natural do Missouri formado por Dylan Brady e Laura Les, tornaram-se num dos nomes mais mencionados, badalados e discutidos. Esta criatura esdrúxula, que aterrava com pompa e circunstância no mundo da música esquisitoide, progressista e rejubilante, aproveitava uma fresta da porta aberta deixada pela música (digital) associada à PC Music de nomes como SOPHIE, Charli XCX ou A.G. Cook, potenciando as características do estilo – sensibilidade pop aliada com os ruídos altivos, as distorções megalómanas, o autotune e o humor de quem vive com memes diariamente e se encontra terminalmente online – para gerarem uma miscelânea de sons que levou à consolidação de um “novo” termo para este estilo de música: hyperpop. Para compreender o fascínio com esta música pop “tanto acessível como deliciosamente estranha” – escrevia a Complex sobre as produções de Dylan Brady no final de 2018 –, basta escutar o tema que jogou os 100 gecs para a ribalta: “money machine”.
Com a sua pujança trap a entrelaçar-se com acordes country estereotipados, noise industrial abusivo e performances despretensiosas, “money machine” é ainda um dos grandes marcos de popularidade do hyperpop. Indo além do lado sonoro criativo e dissonante da dupla, a sua estética também acaba por ser uma das suas grandes valências, personificando todo o néctar presente em toda a cultura cringe (e não só) do universo online. Atente-se parte do primeiro verso de “money machine”:
“Aw, look at those arms
Your arms look so fucking cute, they look like lil’ cigarettes
I bet I could smoke you, I could roast you
And then you’d love it and you’d text me “I love you”
And then I’d fucking ghost you”
Quem procura significados mais aprimorados na música dos 100 gecs não se aflija, pois isso não é o mais importante – o que importa aqui é que se divirtam e que cantem efusivamente as letras. Este sentimento de diversão é o fio condutor espelhado nos pouco mais de 23 minutos do disco de estreia da dupla, 1000 gecs (2019). Em “stupid horse”, por exemplo, ouvimos a ginástica de um ska apunkalhado e desvirtuado a servir de cama para uma crítica ao capitalismo e às jogatinas a dinheiro (ou será que é sobre a carência de heroína?). A fofa e romântica “ringtone”, juntamente com as explosivas “gec 2 Ü” e “hand crushed by a mallet”, são o perfeito exemplo de como os 100 gecs conseguem ser tão disruptivos como orelhudos. 1000 gecs foi muito bem recebido – figurou nas listas de final de ano da Pitchfork, Stereogum, Rolling Stone e do nerd de música mais ocupado da Internet, Anthony Fantano – e hoje podemos aferir: quatro anos volvidos do seu lançamento, ainda é um belo cozido, cujo caldo é o online e o conduto vai desde o deconstructed club ao bubblegum bass, apimentando-se sempre com guitarras dos mais variados estilos que faziam barulho nos 2000s e terminando sempre com o tempero mágico dessa “mixórdia” tão boa que é o hyperprop.
Tal foi o furor deste cozido e a sua cobiça tão grande que as suas caixas de correio eletrónico mais pareciam a Ponte Vasco da Gama quando lá se servia feijoada. Entre 2019 e 2023, os dois elementos dos 100 gecs não pararam. Brady tornou-se no produtor sweetheart do hyperpop, assinando contribuições com boa malta como Charli XCX, Dorian Electra, Injury Reserve ou Rico Nasty – curiosamente, as suas contribuições surgem em trabalhos de primeira prateleira no repertório desses artistas – e ainda lançando o disco de estreia com a sua “outra” banda, Cake Pop. Laura Les, por outro lado, contribuiu atrás do microfone para outros artistas como a própria Rico Nasty, Left At London ou Alice Longyu Gao, e lançou o belíssimo single “Haunted”, incluído na segunda temporada de Euphoria – um trabalho que deixa água na boca para vermos mais de Les a solo. E os gecs enquanto projeto? Lançaram um álbum de remisturas de 1000 gecs em 2020 – 1000 gecs and The Tree of Clues –, que contou com participações dos artistas supracitados e de mais alguns nomes como Kero Kero Bonito, Danny L Harle ou até mesmo os Fall Out Boy. Adicionou-se ainda uma remistura de “One Step Closer” dos Linkin Park como parte da celebração dos 20 anos de Hybrid Theory em 2021, e em 2022 lançaram um EP (Snake Eyes), que continha uma colaboração com Skrillex (uma grande influência na música da dupla).
Justifiquemos agora a razão por, numa peça dedicada a um disco, ainda praticamente não se ter falado do álbum em questão. Simples. Como podemos ver pelos nomes dos trabalhos discográficos da banda, estes baseiam-se na decuplicação do valor numérico presente no seu nome. Portanto, estes trabalhos são extensões de quem são os 100 gecs. Se no primeiro multiplicamos por 10, neste é por 100. Mais gecs. Mais identidade. Dentro destes 10 000 gecs, estão os 1000 de 2019 e com certeza que estarão os essenciais 100 gecs (se estivéssemos na indústria cinematográfica, ainda arriscávamos receber uma prequela intitulada de 10 gecs).
Brady e Les podiam ter-se encostado à sombra dos supostos dogmas do hyperpop e por lá andar a deliciar mais assiduamente os seus entusiastas, mas não foi isso que aconteceu. Passaram-se quase 4 anos desde 1000 gecs e percebemos que arranjar 9000 gecs não é fácil – porém, quando começamos a ouvir este último longa-duração, percebemos a pertinência de tal espera. 10,000 gecs é o momento mais 100 gecs que já tivemos. Este novo registo parte do seu predecessor. Tudo o que se falou sobre a estreia está presente na sequela. São 10 faixas que perfazem 26 minutos, muitas delas que se podem ouvir como sequelas espirituais pela forma como funcionam internamente no disco. Contudo, existe um amadurecimento em todas as frentes e um novo abrir de portas ao hyperpop, pois a música destes dois vai além da barreira de catalogações musicais – e honestamente, deve-se perder tempo a aproveitá-la, e não na difícil (e inútil) tarefa de tentar rotulá-la.
Há um exagero nítido de tudo o que rodeia o léxico gec, sendo importante questionarmo-nos: 10,000 gecs… não serão demasiados gecs? A resposta é algo que acaba por refletir a “essência gec”: Não sei, nem quero saber! A música dos 100 gecs encarna esse sentimento: soa a libertação, a um momento para evitar não pensar nas preocupações e, consequentemente, divertirmo-nos. Para quem teve a sorte de testemunhar a revolução que se deu no Primavera Sound Porto, em 2022, sabe do que falo. Beijos, abraços, mosh pits, saltos, gritos, objetos voadores e acima de tudo muita, mas muita diversão, cheia de amor e com uma plateia de jovens a cantar – e a viver – em uníssono todas as canções. Este fenómeno de grandes magnitudes acabaria por deixar destroços, pois se ainda estivéssemos nas imediações minutos depois do concerto ter acabado, víamos dezenas de pessoas de lanterna em foco no chão à procura dos seus pertences. Por isso, para todos os que perderam bens pessoais no concerto de 100 gecs no Parque da Cidade do Porto, dedicamos uma pausa literária, que – aqui entre nós – equivale a um minuto de silêncio…
Atente-se a primeira faixa do disco, “Dumbest Girl Alive”, onde após levarmos com uma guitarra musculada nas fuças, que bem podia sair da produção mais lavada e genérica de death metal – se estivesse em esteróides, claro – escutamos “If you think I’m stupid now, you should see me when I’m high.”, um momento que tanto nos remete para o êxtase e relaxamento associado ao entorpecimento causado pelo uso de drogas como esconde uma temática algo mais séria – os processos profundos por qual passou Laura Les durante a sua transição de género –, mas que não deixa de ser abordada com o habitual humor e energia dos gecs (ambos muito zoomer, claro). A sobreposição com a frase ambiguamente irónica e autodepreciativa “I’m the Dumbest Girl Alive” é o que finalmente vende a coisa, atraindo-nos para um projeto que, apesar de ser sério, não se leva assim tão a sério (no melhor sentido possível).
Veja-se, por exemplo, a jovial e estranhamente orelhuda “Frog on the Floor”, um ska puro e, de certa forma, juvenil que, com um coaxar anfíbio a ditar o ritmo, emana todo o melodrama do emo, mas que no final de contas é (literalmente) sobre um sapo no chão.
O ska acaba por ser uma das nítidas paixões da dupla, expresso logo a seguir em “Doritos & Fritos”, o segundo single de antecipação ao disco. Já mais arrojado e com uma aura de indie rock meets garage punk, como se se tratassem de umas illuminati hotties – mais uma vez, em esteróides –, homenageiam MF DOOM enquanto instauram um sonho e objetivo coletivo: O de comer burritos com o Danny DeVito.
O momento mais evidente desta paixão ardente do duo por ska vem num dos grandes BANGERS (ALL CAPS, porque merece) do álbum, “I Got My Tooth Removed”. Começando como a típica balada pop romântica melancólica dos anos 80, assim que se instala a contagem “1, 2, 3” somos imediatamente sugados para um mundo colorido, enérgico e sem limites – onde coisas dolorosas, como tirar um dente ou terminar uma relação tóxica, se transformam num dos maiores retratos de alacridade que música pode proporcionar – daquela que é a “música mais ska de sempre”.
Afirmações como a de acima não surgem ao acaso: os 100 gecs capitalizam no exagero dos estilos, utilizando as características mais ignóbeis a seu favor, em prol de injetarem nostalgia e boa disposição no ouvinte. Exemplo disso é a malha “Billy Knows Jamie”, onde o nu-metal chega à panóplia de estilos que sofreram “a reinvenção gec”. Se os Limp Bizkit dessem nos ácidos, fossem zoomers viciados em Minecraft e GTA 5 e curtissem de powerviolence, provavelmente soariam a algo parecido com este som, onde um tal de Jamie, dono de uma arma de fogo e estando em pleno mental breakdown, deseja matar o narrador da canção. As brincadeiras com o metal prosseguem para “One Million Dollars”, que desempenha semelhante papel de limpeza de palato que “gecgecgec” tinha no predecessor, sendo um pequeno recreio onde Laura e Dylan brincam com os seus DAW (Digital Audio Workstation). Segue-se “The Most Wanted Person In The United States”, o momento mais cartoonish e menos geccante do projeto. Por outro lado, “757” é um carimbo de que estamos a ouvir o mesmo grupo que fez 1000 gecs.
Nesta experiência imersiva, efusiva e que mira a despreocupação do que nos atormenta, existe a necessidade de momentos que sejam utilizados para gritar com toda a voltagem existente nos pulmões, para descarregar todas as frustrações. Este grito é muito procurado pelos jovens, especialmente hoje em dia, que em plena iminência de um colapso sócio-económico, são vistos como os culpados pelos erros prepotentes de quem os antecedeu – e que não se contém em rebaixá-los por serem descrentes face ao futuro deste mundo a arder. Desta forma, muitos jovens fogem para o pop punk (ou para o hardcore) para limparem a alma com as emoções extremadas, por vezes irreais, e extremamente estereotipadas que são cantadas sobre aqueles riffs catárticos e satisfatoriamente melódicos. Pois bem; como não poderia faltar, em 10,000 gecs temos o hino “Hollywood Baby”, a junção virtuosa de pop punk e noise pop, que bem se poderia inserir nesse “novo” movimento musical denominado (discutivelmente) digicore. Mas já que se fala em hinos, o primeiro single e derradeira faixa do álbum,“mememe”, encapsula todo o poder que a banda de St. Louis possui, capaz de agregar toda a estética estridente e sonicamente transgressora intrínseca ao ADN do grupo – é um BANGER de ska punk que possui um dos refrões mais orelhudos do repertório do duo.
Regressando à questão fulcral: Será que 10,000 gecs serão demasiados gecs? A resposta racional, despretensiosa e calmamente dada será… NÃO! Se os quatro anos de intervalo entre longas-durações foram mais do que suficientes para construir uma ânsia e expectativa exacerbadas, e que até corria o risco de não poder ser atingida, os 100 gecs não se deixaram intimidar por isso e cumpriram a sua missão de continuarem a oferecer diversão e desconstrução daquilo que pode ser definido como música pop nos dias de hoje. A cada visita que se faz a 10,000 gecs, mais cristalina se revela a sua superioridade. É um registo onde os 100 gecs se reforçam como ícones de uma geração, colocando um franco foco naquilo que querem criar e (des)construir com esse estatuto. Portanto, não, 10,000 gecs não são demasiados gecs, e reforçe-se que, se a consistência persistir, não existirá algo como demasiados gecs. Que venham 100,000 gecs, então. Temos espaço para geccar com todos eles.