Somos aquilo que vivemos. As vivências, essas experiências momentâneas, são ferramentas para construirmos identidade. O sentimento que se tira destas dependerá da forma como iremos percecioná-las no futuro, de como estas sobrevivem (ou não) na nossa memória.As memórias, no fundo, são uma expressão daquilo que somos. Todas elas são importantes. Boas, más, traumáticas, bizarras ou até mesmo monótonas. Servem para percebermos aquilo que gostamos ou não gostamos e acabam por nos servir de guia, consoante a satisfação que nos trazem quando pensamos nelas. E com o desenrolar da idade, as vivências vão-se tornando cada vez mais valiosas. Vão-se tendo cada vez menos e as que se têm, sucumbem a dolorosos critérios que se sobrepõem ao envelhecimento.
Dói. Dói saber que um dia não poderemos fazer aquilo que já fizemos. Um dia tudo se dissipa. Lá vão as lembranças. O passado foge de um local onde não se aproxima muito futuro. Resta esperar. Deambular enquanto tentamos ser aquilo que outrora fomos. Talvez com mágoa do que não se fez, mas também com prazer no que ainda vive na mente. É aí, nas memórias, que ainda nos encontramos. Mas tudo é assim. O infindável não é humanamente conhecido. Tudo o que nos rodeia tem um fim. Tudo é efémero.
Não sabemos o que virá a seguir. Mas até lá, irrelevante de quando esse derradeiro dia chegar, iremos estar aqui. A viver, a experienciar, a continuar a ser alguém. Até esse último suspiro ou até à última gota de lucidez. Vivemos. Até lá, construir-se-ão memórias. Muitas que não queremos perder nem por nada, tal é o impacto que têm no nosso espírito e na pessoa que queremos ser. Foi o caso desta semana que agora vos relato.
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Terça-Feira, 6 de junho. Faro viu aterrar no seu território uns cisnes bem ruidosos e muito celebrados nos cenários mais agrestes da música internacional. Os Swans, lendária banda de noise rock liderada por Michael Gira, faziam a sua estreia na capital algarvia, para grande agrado dos (solitários) melómanos da região.
Faro foi a cidade que me viu nascer e palco de grande parte das minhas vivências até hoje. Por isso, viu-me fazer disparates (bastantes) e cometer muitos erros, mas talvez nenhum desses tenha sido tão estúpido como o facto de ter ido para uma fila da frente de Swans sem tampões para os ouvidos. Arrependi-me mal o senhor Gira arremessou um punho cerrado em movimento descendente, comandando a companhia – nesta digressão, Dana Schechter (baixo), Kristof Hahn (guitarra), Phil Puleo (baterista), Larry Mullins (percussão) e Christopher Pravdica (guitarra) – a fazer despoletar uma catarse sonora que hipnotizava o Teatro das Figuras. Escutaram-se temas do mais recente disco da banda que emergiu da cena de no wave nova-iorquina dos anos 80, leaving meaning. (2019), mas o concerto focou-se em apresentar o novo longa-duração do grupo, The Beggar, que é hoje (23) revelado ao mundo (e que se antecipa como um dos candidatos aos demais palmarés das lides musicais).
Depois de hora e meia a imergir os presentes nas distorções e catarses harmónicas que viviam a grandes altitudes sonoras, teve-se de saudar Gira, agradecer pelo concerto e regressar a casa para poder repousar para o que viria no dia seguinte.
Infelizmente, quase como uma reação traumática, não consegui dormir, tal era o barulho que persistia a ecoar entre os ouvidos. Durante o concerto cheguei a temer pela minha audição (nada medroso, portanto), o que me fez chegar ao pensamento terrorífico de perder este sentido e das crises identitárias que iriam rodear esse flagelo. Ressoou novamente o pensamento da efemeridade de tudo isto. O que será de mim quando o som desaparecer? Medo!
Nos dias que se seguiriam, muita música iria passar-me pelos ouvidos que, devido ao receio de os danificar ainda mais, já estavam adornados de um par de tampões de proteção.
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Quarta-feira, 7 de junho. Dia de acordar cedo e rumar ao norte do país para mais uma edição (a décima) do Primavera Sound Porto, o primeiro dos “grandes festivais” de verão do ano.
Tempo de reencontrar amigues e família, pôr a conversa em dia, beber cerveja ridiculamente inflacionada, decidir-se a que concertos se vai enquanto se deambula pelo recinto e, enfim, fazer-se o que se faz melhor nestas condições: viver a música.
E foi um bocado assim que se passaram estes quatro dias de festival: um aglomerado de vivências com a música como pano de fundo. A música, tal como as vivências, também nos constrói. É uma expressão daquilo que nos interessa, daquilo que gostamos e por sua vez, do que somos. Quando a música marca as vivências, demonstra-nos facilmente o significado e importância que estas têm para nós. Vivências de nada significam, se delas não restarem memórias. Note-se como Miguel Rocha descreve os ruídos danados que ouviu na edição de 2022 do festival e como isso o marcou. Também da edição de 2022 do Primavera Porto me ficaram na memória vários concertos, sendo que o que mais me fez regressar (via memórias!), foi o do rapper Earl Sweatshirt. Apesar de não ter sido o melhor concerto que vi nessa edição do Primavera Sound Porto, foi o que mais gostei, por tudo aquilo que senti.
Nunca nos iremos lembrar da totalidade de um concerto e, às vezes, talvez só um ou outro momento nos fique marcado explicitamente (varia consoante a improbabilidade e impacto dos mesmos). O que resta é a emoção que vivemos e o quanto prazer nos dá relembrar. Pouco me lembro do que se passou no concerto dos The Comet is Coming no primeiro dia do festival, mas sei que o saxofone danado de Shabaka Hutchings (talvez a despedir-se definitivamente do instrumento…) voltou a fazer-me transcender, desta vez à chuva, naquela gloriosa transição para “Blood of The Past” (contudo, consigo afirmar que preferi a versão que escutei em Paredes de Coura em 2022). Pouco depois, em Kendrick Lamar – o Grande nome do primeiro dia do festival, muito afetado pela chuva – apesar do muito que saltei e cantei durante o concerto, talvez o que mais recordo seja o desconforto de ter os pés ensopados e de um jovem ao meu lado a suplicar à mãe que esta visse o colosso K.Dot – se o fez, fez bem.
Assim se foram passando os dias, sustentado a cevada e bifanas, num constante movimento tira impermeável, põe impermeável. Seguiram-se memoráveis dias e concertos. No segundo dia do festival, tivemos o fenómeno Fred Again.. a roubar os corações precipitados do Porto – incluindo o meu que, bem de perto, gastava toda a minha energia ao ver um dos nomes por que mais ansiava da edição de 2023 do Primavera Porto. Talvez seja conversa para outro dia, mas quem duvidava da importância do produtor britânico no panorama atual da música eletrónica e no consequente ressurgimento desta no mainstream, penso que tenha tido uma resposta clara à pertinência desse discurso ao observar uma das maiores enchentes ao principal palco secundário do festival (que nem ele próprio esperava encontrar, tal era a chuva que caía).
O dia seguinte foi um autêntico All Killer No Filler. Satisfez-se o meu eu de 15 anos ao ir assistir ao regresso do rapper Pusha T a Portugal. No concerto, banhado a bangers, a frieza possante do nova-iorquino trouxe até à invicta os seus dois últimos discos, It’s Almost Dry – que cresceu na minha consideração depois do concerto – e o muito celebrado DAYTONA, dando ainda tempo para brindar o público, que o recebeu de forma irretocável e calorosa, com mosh pits (ao som de Future e Chief Keef) e um throwback ao início da sua carreira, ao interpretar o sucesso “Grindin’”, dos Clipse (grupo de Pusha T com o seu irmão No Malice).
Seguiu-se, de imediato, o incentivo à natalidade que foi o concerto de NxWorries. Com as mãos de Knxwledge a comandarem os vinis e o carisma de Anderson .Paak a sobressair, a temperatura do Parque da Cidade do Porto subiu, com o público a render-se ao groove hipnotizante que saía das colunas. Quando um artista (.Paak) entra num palco a suplicar para que os casais do público se mamassem na boca, não é necessário dizer muito mais sobre o concerto.
O terceiro dia do festival confirmou-se como um dos mais fortes da edição deste ano, com uma das performances mais imaculadas do festival, assim que St. Vincent, nome com que se veste Annie Clark, subiu ao palco para deixar catarses emotivas e brindar os fãs com performances eletrizantes lotadas de voltagem. Foi um grande concerto rock – com R grande. Mas o dia só findou quando os DARKSIDE trouxeram a real jarda ao Parque da Cidade do Porto. Duas horas de música sem intervalos, onde Nicolas Jaar, endiabrado, fazia rugir os sintetizadores que comandava que nem marionetas para um manto de “sobreviventes” que, ora à chuva, ora sob as luzes estroboscópicas, dançavam como se as suas vidas dependessem disso. As guitarradas infecciosas de Dave Harrington e as percussões maníacas, aliadas à cenografia narcótica, fizeram dos DARKSIDE uma das experiências mais etéreas e transcendentes de todo o festival. Ficam as memórias para recordar daqui para a frente.
No último dia do Primavera Porto, voltei a ver Yves Tumor, esse camaleão da pop atual, que me deu um dos meus concertos favoritos de 2022 (em Paredes de Coura). Apesar dos problemas de som, foi suficiente para voltar a ascender a outro ponto de existência e culminar numa combustão espontânea em “Kerosene!”, esse enorme malhão presente em Heaven To A Tortured Mind (2020), predecessor do disco que Tumor lançou este ano, Praise a Lord Who Chews But Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds).
Dos vários concertos que vi, estes foram os que me marcaram mais. Evidente que também se podia mencionar a jovialidade dos canadianos Alvvays, a sempre poderosa ROSALÍA, o calor (físico e metafórico) que trouxeram (os também canadianos) PUP, o prazeroso entardecer dos regressados Karate ou a minha conversão ao drainismo quando os Drain Gang “encerraram” o festival.
E também se pode (e deve) falar do que correu mal. A (dupla) potente falha de som durante o concerto dos New Order foi uma má nota de rodapé para o último dia de festival, mas nada bate o erro mais crasso, o valente tiro no pé que foi a mudança de localização do palco principal – este que ao terceiro dia cheirava a suinicultura. Mas para isso, teria escrito um artigo especificamente focado no Primavera. Apesar de parecer, isto não o é.
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Domingo, 11 de junho. Ainda me encontrava no Porto – quis a CP dar-me comboios só no dia seguinte –, e foi tempo de aproveitar a “folga” (como se festivais não o fossem) para visitar família. Especificamente, uma das pessoas que me é mais importante. Foi esse encontro que me levou a escrever este devaneio.
Já não a via há cerca de 3 meses, o que para uma pessoa que vive comigo, é demasiado. Fiz uma surpresa. Apareci em casa sem aviso prévio. Esbocei um sorriso que tentava espelhar aquele tão rasgado que tinha à minha frente. Falhei miseravelmente.
É um sentimento agridoce fazer esta visita, pois sou sempre bem recebido. Mas faz-me pensar na vida – e isso dói. Ao seu lado, estava a sua grande amiga (também minha parente) que partilhava a felicidade de me ver. Escusei de falar do que estive a fazer naqueles dias – não era importante. Preferi ouvir. E assim foi.
O que era para ser uma visita relâmpago passou a um par de horas à conversa – interpolada por um “Não tens fome? Come qualquer coisinha”. Ouvi memórias. Vivências que ainda restam. Passou-se a vista em fotos e passou-se pela vida em histórias. Pouco se falou sobre o presente, porque esse? Está chato. No futuro? Nem se tocou – só à despedida, com a promessa de que nos veríamos brevemente. E talvez, ainda bem. O futuro é assustador. Para me manter calmo, tinha a beleza de um terraço em Gaia, que abafava os meus pensamentos. Mas foram estes que eu queria aqui perpetuar.
O contraste entre os meus últimos dias – desde o concerto de Swans ao Primavera Sound, quase conectados pelas poucas horas de sono e vida errante que vivi – e esta visita fez-me pensar na efemeridade de tudo isto. Aquilo que vivi nestes dias foi valioso.
O ano passado fui a vários festivais e concertos, mas todos eles aconteceram numa altura de transição e auto aceitação. Apesar de lá terem saído experiências de uma vida, estes dias tiveram um sabor especial. Agora, aproveitando para respirar esta primavera da vida, sem peso nas costas, sinto-me… bem. Feliz. E isso é estranho! Mas é como me tenho sentido. Talvez esteja assim por não enfrentar com tanto fatalismo as questões existenciais. Questões estas que também invadem muito das minhas experiências em concertos, das mais complexas e deprimentes – claro que não as vou contar aqui, ainda tenho algum juízo –, às mais leves, como: “Deve ser incrível ter uma banda e andar em digressão”. “Porque é que não tenho uma banda?” “Porque é que nunca aprendi a fazer música?” E a cadeia de porquês continua.
A verdade é que esta vida não vai durar para sempre. Vida de concertos, noites compridas, copos empilhados, danças eufóricas e as demais coisas que nos acompanham nas vivências musicais. E tão importantes que estas são. “Quem me dá um concerto, dá-me tudo”, dizia-me um amigo enquanto tagarelávamos circundados de roulottes. No fundo, é sobre isso.
Claro que nem toda a gente gosta de concertos e há até quem nem goste de música – deve haver, digo eu –, mas espero que essas pessoas tenham a oportunidade de ter uma alternativa que lhes levante o ânimo e injete dopamina, da mesma forma que um concerto me faz.
Mais uma vez, há coisas que não duram para sempre. Qualquer dia, o som dissipa-se. Deixamos de ir a festivais. Não teremos esta genica, vontade, disponibilidade ou até o interesse em fazê-lo. Se ao menos restarem memórias, poderemos visitá-las. É um misto de dor e prazer pelo que se viveu. Talvez, os tramados “ses” que ditam o que se poderia ter feito, até tragam alguma mágoa.
Mas aqui começa mais uma época festivaleira veranil. Aqui se celebra o que se estudou e trabalhou por meses a fio. É tempo de criar memórias. Por isso, que se aproveite, enquanto ainda podemos fazê-lo. Porque “onde há vida, há música”. Mas onde não há música, não haverá grande vida.