Baile é sinónimo de dança. A afirmação pode parecer óbvia – e talvez até o seja –, mas muitas vezes fica um pouco esquecida. Bailar é dançar, dançar *pode* – e costuma – ser bailar.
Nos últimos tempos, muito se tem discutido um conceito que, se até bem recentemente era revisto a partir de um olhar pronto a celebrar certas facções da pop culture tuga e da nossa história oral, hoje parece estar gasto, usado de tal forma excessiva que se começa a – e se deve – questionar o que é (ou não) sincero e, se calhar, se o que veio antes era ou não sincero. Falamos, ora, desse eviscerado conceito que é a portugalidade e revivalismos a esta associados.
Contudo, vale a pena referir: este artigo não é sobre portugalidade. Na verdade, este artigo até começou por ser sobre portugalidade e a sua relação com música de baile (aqui, falamos da portuguesa), mas à medida que fomos falando com os intervenientes, percebeu-se que a portugalidade era apenas uma nota de rodapé que serviu de combustível para estas conversas irem acontecendo.
Se este artigo não é sobre portugalidade, então permitam-nos apresentar sobre o que realmente se trata. A Playback foi conversar com os intervenientes de duas festas diferentes, o Bar Dançante e o Super Baile, que têm como objetivo comum (apesar de chegarem lá de formas muito distintas) celebrar a música de baile, e tentámos encontrar as diferenças e os paralelos entre ambas de forma a tirar alguma conclusão sobre estas (re)apreciações da música de baile que têm ocorrido nos últimos tempos. Vamos a isso?
Bar Dançante
Comecemos, então, pelo Bar Dançante. O Bar Dançante é uma festa que conta com a assinatura de Mike El Nite e João Não, dois nomes que, ao longo da sua carreira, têm sabido explorar a pop culture nacional (mais o Mike) e o lado mais romântico da música portuguesa (mais o João).
O Bar Dançante é uma celebração que é parte-concerto (de um astro da música popular) e parte-DJ set de Miguel e João, um formato que, segundo o autor de canções como “Mambo Nº1” ou “Dr. Bayard”, é “uma mistura entre um bar dancing à antiga e uma discoteca suburbana, como se pode encontrar em qualquer periferia de uma cidade”. A primeira edição da festança ocorreu no passado dia 25 de fevereiro, no Maus Hábitos no Porto, e teve a presença de Marante, numa noite que, escreveu a Glam Magazine, contou com “filas de mais de 400 metros para ver, dançar e vivenciar a portugalidade simples e espontânea da lenda da música popular nacional.”
Como a primeira edição correu bem – o conceito “colou bastante”, revela Mike El Nite –, o Bar Dançante tem-se replicado além da sua casa-mãe, tendo já ocorrido em locais como o Lustre, em Braga (também com Marante), ou na Musa de Marvila, em Lisboa (em formato mini-Bar Dançante, com apenas DJ set). No Maus Hábitos, a segunda edição contou com a presença de Nel Monteiro, numa noite também ela esgotada; o próximo Bar Dançante ocorre neste sábado (20), no Bang Avenue, em Torres Vedras, em formato DJ set da dupla.
Apresentada a curta história do Bar Dançante, podemos falar de como apareceu o conceito. João Não conta que o Bar Dançante surgiu da “junção de várias cabeças e de várias ideias a pensar mais ou menos numa coisa comum”, enquanto Mike El Nite especifica: “Eu, o João e o Nuno [Lil Noon] estávamos a trabalhar nuns temas, em que um dos temas chamava-se ‘Bar Dançante’. Depois, em conversa com o SlimCutz, surgiu a ideia do conceito para uma festa que celebrasse música de baile (que não fosse só portuguesa), e acabaram-se a juntar as duas ideias numa.”
Nesta festa ouve-se um pouco de tudo, mas o foco é a música de baile – portuguesa e não só. Claro que existe o lado de apreciação e homenagem da música de baile portuguesa – e as presenças de Marante e Nel Monteiro demonstram isso mesmo –, mas neste Bar Dançante escuta-se a música que Miguel e João não estavam a “ouvir em outras festas”, podendo ir desde música de baile de todos os tipos e lugares, desde clássicos dos anos 80 (lembramo-nos de vídeos de uma das festas com ABBA a tocar!) a kizombadas e alguma house dos anos 2000. O objetivo é que o público dance e se divirta; pelo meio, celebra-se ainda a música popular portuguesa, levando-a, por um lado, até pessoas que estão genuinamente interessadas em descobrir mais sobre artistas como o Marante ou Nel Monteiro, e por outro, até às pessoas que frequentam regularmente espaços que, à partida, não associaríamos ao imaginário de música de baile (portuguesa).
Porém, como tanto Miguel e João sublinham, “baile” e “dança” são sinónimos, e apesar de não existir a associação direta entre um espaço como, por exemplo, o Maus Hábitos, e música de baile ou música popular portuguesa, faz todo o sentido que locais que contem com programação variada possam ter espaço para uma festa como o Bar Dançante. “São sítios de baile, não é? São sítios onde as pessoas vão dançar, são discotecas. Se a discoteca tiver um som em madeira ou pormenores clássicos como uma bola de cristal, melhor ainda!”, conta Mike El Nite por entre sorrisos.
“Não tem como correr mal quando estás a trazer uma proposta diferente, que é dançável à mesma, a um sítio”, indica-nos Mike El Nite. “Basta às vezes pôr um tempero diferente, e parece uma coisa muito fresca e muito nova, mas na verdade estamos a fazer o mesmo ritual. A playlist é que é outra”, conclui.
Apesar de Mike El Nite e João Não serem as principais caras do Bar Dançante, o nome de SlimCutz e Marta Sampaio também surgem durante a nossa conversa como pessoas importantes na produção destas festas. E para um Bar Dançante ocorrer, várias coisas têm de se encontrar num dado momento para a festa “funcionar”, como revela Mike El Nite.
Há um lado espontâneo em fazer um Bar Dançante acontecer, mas também é necessário algum planeamento e que as disponibilidades de todos os interessados se alinhem. Miguel e João, que já colaboraram em faixas como “Purpurina” ou “Danceteria Love”, falam-nos de um processo que mais se assemelha à arqueologia para tentarem encontrar os contactos de artistas que gostavam de apresentar no evento. “É um clash de gerações a nível profissional, de como é que se trabalha agora e como se trabalhava antes”, confidencia Mike El Nite.
Apesar desse “pequeno” entrave, os astros têm-se alinhado e o Bar Dançante tem sido um sucesso, tanto a nível de público como a nível das relações criadas entre os artistas que já passaram pela festa e estes “embaixadores” do baile. A vontade é, por agora, continuar a fazer a festa acontecer (e em mais sítios), procurando introduzir algumas novas ideias nas quais a equipa do Bar Dançante vai “trabalhando conforme o tempo permitido”, revela-nos João Não. “Enquanto houver vontade, vai-se fazendo”, conclui Mike El Nite.
Super Baile
Apresentado o Bar Dançante, está na altura de falarmos do Super Baile. O Super Baile é uma festa e um supergrupo que nasce no Musicbox, em Lisboa, formado por Lila Fadista (Fado Bicha) e João Sala (Ganso, Zarco) nas vozes, e por Raquel Pimpão (Fumo Ninja, Femme Falafel), Edvânio Vunge (Força Suprema, Nayr Faquirá) e Gui Tomé Ribeiro (Salto, GPU Panic) nos teclados, e cuja primeira edição ocorreu na passada sexta-feira (12). Até outubro, está previsto que este evento aconteça todos os meses, apenas com pausa durante o mês de agosto (curiosamente, o mês do baile!).
A ideia que serviu de base para a criação do Super Baile partiu dos programadores do Musicbox, Pedro Azevedo e Inês Henriques, a partir da nova relação do espaço lisboeta com a cerveja Super Bock. Pedro Azevedo acrescenta ainda que era necessário criar um evento que refletisse na programação essa nova relação: “Não tínhamos muito interesse em replicar algo que já tivemos no passado e, por isso, estivemos algum tempo perdidos a pensar no que poderíamos fazer”, revela-nos Pedro.
Apesar de alguma indecisão inicial, eventualmente aquilo que Pedro e Inês andavam a escutar traduziu-se em inspiração para o que viria a ser o conceito do Super Baile. “Andávamos a ouvir e a pensar num formato de clubbing mais tradicional e acabamos por tropeçar numa série de grupos de baile que acabaram por ativar esse imaginário”, indica-nos Pedro. As bases estavam traçadas – era necessário agora alguém para as erguer.
Nenhum dos elementos que acabaram por constituir o projeto do Super Baile ponderou não aceitar o desafio lançado pela equipa do Musicbox. Aliás, enquanto os entrevistávamos durante um dos ensaios para a noite da passada sexta-feira, reparámos numa certa excitação para com a ideia do projeto e pelo cruzamento de todas estas personalidades e percursos num só local, unidos num único objetivo: celebrar a música de baile em todas as suas formas e feitios, que nunca fica só pela sua vertente dita portuguesa. “Ser Super Baile era claramente uma coisa mais abrangente [do que apenas música de baile portuguesa] e apetecia-nos tocar músicas diferentes”, revela Gui Tomé Ribeiro. “Acho que estamos abertos a tudo, também. O mundo existe, não é só Portugal.”, acrescenta Edvânio.
A construção da setlist dos Super Baile começou com um mood board com várias músicas do que a equipa do Musicbox interpretava “como música de baile”, como nos contou Pedro, passando depois aos cinco elementos da banda, que acabaram por também adicionarem as suas próprias sugestões à pool de faixas a tocar. Na lista final, não se ouve só música portuguesa: cantam-se canções em persa (“Azizam”, de Liraz), viaja-se pelo universo da música de baile romena (“Ne Am Despartit”, de Raze De Soare), e escutam-se várias versões da língua portuguesa através de versões de canções de Rita Lee & Roberto Carvalho (“Flagra”), José Pinhal (“Covarde”) ou Bonga (“Galinha Kassafa”), e até um original do próprio grupo, “P’XINA (Marcha)”, que, de certa forma, cumpre um dos objetivos apresentados por Pedro Azevedo – o de criar uma marcha que trouxesse “um baile para o Cais do Sodré”, onde se localiza o Musicbox.
O largo espectro de música de baile escutada no repertório ao vivo dos Super Baile representa, igualmente, o vasto leque de influências dos elementos do grupo, assim como as suas vivências, as suas personalidades e os seus gostos. É curioso constatar que, neste grupo, e contrariamente àquilo que se assiste em alguns aspectos da música de baile (particularmente a portuguesa), não existem apenas indivíduos brancos, cisgénero e heterossexuais, o que reflete também um pouco o tecido de Lisboa enquanto cidade pluricultural. “O Super Baile acaba por projetar um bocadinho esse encontro e convergência que, no fundo, também é um reflexo daquilo que é a cidade de Lisboa nos dias de hoje”, explica Inês, após ponderar sobre as várias manifestações de música de baile terem um denominador comum: a libertação e comunhão num só espaço.
Pela sua programação de clubbing, que tanto pode ir de Noites Príncipe até noites de eletrónica mais tradicional, o Musicbox propõe-se oferecer exatamente essa libertação e comunhão a quem frequenta o espaço. Inês Henriques fala-nos dos bailes populares para a classe trabalhadora, onde existiam como um espaço “de libertação, de encontros e de identidades e do reencontro das pessoas com o sua própria identidade pessoal assim fora da sua identidade laboral”: “Então, há muito essa vontade de recuperar este espírito de libertação dos corpos e trazê-lo para um contexto de clube, como o Musicbox, que já é esse espaço de libertação, em contexto de clubbing normalmente”, conclui a programadora do espaço lisboeta.
O ponto levantado por Inês Henriques remete-nos para aquele que é um dos grandes desafios do Super Baile enquanto grupo, o de “criar um contexto e uma experiência de baile num clube todo preto debaixo do chão”, como nos indicou Lila Fadista. Porém, retornamos ao ponto: “baile” é “dança”. Se o Musicbox, como nos relembra e bem Gui Tomé Ribeiro, já conta com “um imaginário de baile bem abrangente” pelo seu contexto de programação, que envolve muita música de dança de todos os feitios, então porque é que também não caberia uma noite Super Baile na sua programação? “É muito interessante podermos juntar uma casa que, embora seja muito heterogénea, não costuma ter música de baile deste imaginário, o das festas dos santos populares e de verão, que se calhar está mais fora deste circuito mais urbano”, reflete o vocalista dos Salto sobre o assunto.
Com a primeira edição a contar com uma sala bem composta, o Super Baile parece ter pernas para andar, tendo quatro edições restantes até outubro de 2023. Daí para a frente, a vontade, de acordo com Pedro Azevedo, “é continuar”, mas o pensamento é simultaneamente ir fazendo, avaliando e depois “logo se vê”, conclui.