ruídos danados

Nas últimas semanas, tenho dado por mim a tentar lembrar-me de um dos concertos onde me senti mais feliz. Onde a mente esvaziou (algo muito complicado para mim de fazer acontecer) e os pensamentos desapareceram, e onde, de certa forma, me tornei um só com a música. Voei ao lado do crunch das guitarras, saltei agarrado a um baixo galopante, dancei com o hit definitivo na tarola, viajei circum-adjacente com vocais etéreos. Berrei com amigos. Momentaneamente, imaginei-me a ter uma banda e estar em palco. Tudo parecia um sonho – mas era a realidade.

Acho que todos temos *aquele* concerto para o qual regressamos nas nossas memórias em procura de uma felicidade que parece inalcançável. Acho também que, mesmo nos piores concertos que possamos ver, existe sempre algo que fica connosco, mesmo que o que fique seja uma enorme vontade de nunca mais ver tamanha besteira ao vivo (desculpem, mas Beach House ao vivo é soninho puro).

A música ao vivo tem uma capacidade especial de fazer surgir em nós sentimentos que são viscerais e que transcendem a nossa própria noção do que somos capazes de sentir. De repente, estamos além do real, presos nas neblinas tempestuosas do ruído que chega aos nossos ouvidos através do PA mais próximo, estimulados de forma incessante por barulhos que, mesmo quando conhecidos, nos suscitam reações instantâneas e imprevisíveis. Isso é a magia da música ao vivo e é ela que nos guia por esta vida… Mas estou a divagar.

Já vi muitos bons concertos e já vi excelentes concertos – e também já vi péssimos –, mas conto pelos dedos duma mão os concertos que, volta e meia, me surgem na memória quase como um refúgio, uma máquina do tempo para um local e momento onde som, movimento e ambiente tornaram-se num só e nos tornamos passageiros da viagem. Lembro-me de um concerto de Godspeed You! Black Emperor no Lisboa Ao Vivo (em 2019) em que mal me recordo de tocar com os pés no chão. Lembro-me da terra a voar pelo meio da confusão e emoção extrema no concerto de Car Seat Headrest em Paredes de Coura (também em 2019). Lembro-me de praticamente tudo do concerto dos DIIV que vi na edição de 2022 do Primavera Sound, no Porto. (Haverá com certeza outros, mas estes foram os que escolhi mencionar). É o concerto dos DIIV no Parque da Cidade que me tem surgido na memória e que sinto que habita mais o meu subconsciente.

Breve história sobre a minha relação com os DIIV. Tenho a certeza de que, como muita outra boa gente, descobri os DIIV numa rádio qualquer de indie no Spotify ao escutar “Doused”, faixa destaque de Oshin, longa-duração de estreia da banda de Brooklyn. Recordo-me de ficar curioso com a junção entre dream pop e pós-punk da banda e de ir escutar Oshin na íntegra. Guardei a “Doused”, decidi ficar atento a outros lançamentos da editora (Captured Tracks), mas não achei grande coisa ao disco (era burro – Oshin é um excelente disco de música de guitarras). Corria o ano de – penso eu – 2016.

Tirando a ocasional visita a uma ou outra malha, esqueci um pouco os DIIV. O segundo disco, Is the Is Are, lançado em 2016 e marcado por bastante polémica, passou-me ao lado e mesmo hoje em dia não lhe ligo. Sinto que, apesar de ser um disco que representa o caos vivido pela banda na altura e de conter grandes canções como “Under the Sun” ou “Mire (Grant’s Song)”, grande parte dele é excessivo e inconsistente, um devaneio sentimental e megalómano desproporcional à sua qualidade. Entra na sala, então, Deceiver, de 2019.

Inicialmente, Deceiver, o regresso de Zachary Cole Smith – mente principal do projeto –, Andrew Bailey, Colin Caulfield e Ben Newman aos longa-duração após a passagem de Cole Smith por um longo período de reabilitação, não me aqueceu nem arrefeceu. Soou-me um pouco a shoegaze pesado sui-generis e, tirando “Blankenship”, nenhuma malha me ficou na cabeça. Mas com o tempo, algo começou a mudar. Comecei a regressar ao disco várias vezes e as canções começaram a entrar. Decidi comprar bilhete para o concerto de apresentação do disco no Lisboa ao Vivo, que ia ocorrer a 20 de março de 2020. Lembram-se do que aconteceu por essa altura? Pois… Esse concerto nunca chegou a acontecer.

Fast forward para junho de 2022. Já tinha ido a uns quantos concertos e a um festival (Iminente 2019) antes de entrar no recinto do Primavera, mas não tinha assistido a um que tivesse providenciado o clique que procurava para abraçar de novo a música ao vivo. Isto é, até ao concerto dos DIIV no Parque da Cidade do Porto.

Com o aproximar da hora de início do concerto – era um belo final de tarde na cidade do Porto –, tenho em lembrança a excitação e burburinho que se fazia sentir por parte do público, de sentir uma espécie de abraço, que podia ou não ser real, de outros tantos fãs que estavam prestes a ter a oportunidade que nunca tinham tido em março de 2020.

Lembro-me das borboletas na barriga quando os DIIV entraram em palco. Do sorriso gigante que em mim se formou quando se escutaram os primeiros de “Under the Sun”. De gritar de felicidade quando a distorção de “Taker” ou de “Horsehead” (canção incrível) bateu com força. De quase chorar com a melodia belíssima de “Like Before You Were Born”. De sentir a melancolia de “Take Your Time” na pele. De correr para entrar no moshpit ao som do rock essencial de “Blankenship” e sentir múltiplos corpos a dançarem em conjunto num só espaço com respeito máximo. Tudo fez sentido. Estava onde era suposto estar. Com quem devia estar.

Vi outros grandes concertos durante essa edição do Primavera Sound Porto, como Little Simz, Rina Sawayama, Pavement ou King Krule. Vi muitos concertos durante o resto de 2022 – talvez até demasiados –, e já outros quantos durante estes primeiros meses de 2023. Nenhum continua a aparecer-me tantas vezes na memória e a fazer-me sorrir como esse concerto de DIIV. O eco dos ruídos danados gerados pela banda é agora meu companheiro predileto de pensamento e ajuda a elevar Deceiver para o estatuto de um dos meus discos favoritos de sempre. Durante aquela hora, os DIIV foram a única banda que alguma vez existiu para mim. Na miragem da memória, talvez ainda o sejam.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Memórias impactantes do passado.

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