Onde há vida, há música. Este é o mote que guia a Playback e não é por acaso. Quem não sente o coração a palpitar, mais que o habitual, ao ouvir uma música que mexe (e remexe) com as nossas emoções e com os nossos corpos? Pode fazer sorrir, pode fazer chorar, pode fazer rir, pode fazer dançar. Pode arrepiar, pode motivar, pode acalmar. Enfim, torna-nos seres mais completos e humanos.
Para mim, a música é terapia e é por isso que vos escrevo este artigo, permitindo-me ser vulnerável. Desde pequena, tenho o hábito de guardar numa pequena caixa coisas que carregam um valor sentimental imensurável, desde registos fotográficos, objetos pessoais, ou, até mesmo, simples bilhetes de concertos. Só há pouco tempo é que me ocorreu que só vou lá remexer quando me sinto incapaz de lidar com as minhas incertezas, frustrações e inseguranças. Gosto de acreditar que é em busca de algum conforto emocional, para me fazer lembrar das minhas vivências e conquistas, para me fazer lembrar de quem já fui e de quem sou hoje. Isto para dizer que, na minha vida, a música representa um papel muito semelhante. Existem discos que carregamos connosco que equivalem a um espelho da nossa própria existência e, no meu caso, o mais identificável é o segundo álbum a solo do cantor e compositor brasileiro Tim Bernardes, Mil Coisas Invisíveis, lançado em junho de 2022.
O nome de Tim Bernardes não é novo, pelo menos para os mais atentos à cena musical brasileira. Para falar sobre ele, é imperativo mencionar O Terno – banda de indie rock (com a qual já visitou Portugal) que formou com Guilherme D’Almeida e Victor Chaves (substituído, mais tarde, por Gabriel Basile) e com quem já editou quatro discos. Começou a dar cartas mais sonantes em nome próprio quando, em 2017, editou o álbum Recomeçar, derretendo os corações da sua geração com uma ternura e doçura nunca antes vistas.
Cinco anos depois, deu início a um novo ciclo com o lançamento de “Nascer, Viver, Morrer”. Uma faixa simples, mas um tanto catártica, onde nos entrega uma visão cristalina do ciclo da vida. Ouve-se um arranjo simples de guitarra e bateria e um Tim Bernardes descontraído, cantando tão docemente que nos possui a alma e aquece por dentro. Não foram precisos mais de dois minutos para deixar a pairar no ar a sensação de que algo de grandioso estaria por vir. Daí em diante, as expectativas tornaram-se exageradamente altas. Ainda assim, fez questão de elevar muito mais a fasquia quando desvendou todas as Mil Coisas Invisíveis, álbum editado pela Psychic Hotline, e que tem recebido rasgados elogios por parte da crítica. “Simples e exuberante”, escreveu Lia Pereira para o Expresso. “Meditativo e igualmente íntimo”, escreveu Shirley Van-Dúnem para o Rimas e Batidas. Com a duração de pouco menos de uma hora, Tim Bernardes transformou aquele que poderia ser apenas mais um disco numa grandiosa obra-prima, excepcionalmente coesa e bem elaborada, digna de se alinhar ao lado do melhor do que se tem feito, nos últimos tempos, no panorama musical mundial.
Permitam-me recuar no tempo e reviver algumas memórias. 2021, que ano foi! Não precisamos de puxar muito pela cabeça para nos recordarmos do que andávamos a fazer por essa altura. Enclausurados nas nossas próprias casas, limitados de qualquer tipo de convívio social, distanciados de tudo e de todos, a tentar (sobre)viver. Um período devastador que fez estremecer as nossas certezas e puxou a nossa sanidade mental ao limite. Todos estamos cientes de que o tempo de pandemia ficou maioritariamente marcado pela perda, a vários níveis; mas a urgência de transformação e adaptação também fez brotar novas práticas e criações. Impedido de levar a sua música aos palcos e ao público, Tim Bernardes não só aproveitou para testar todos os equipamentos ao seu alcance e arquitetar uma autêntica experiência sonora imersiva, como também para embarcar numa longa viagem interior, refletindo sobre questões existenciais, mistérios da vida e, até mesmo, curiosidades em torno do sagrado. E assim foi confeccionando as Mil Coisas Invisíveis, por entre períodos e estados de alma distintos.
Recordam-se de quando associei a música a uma caixa de recordações? Ora bem, este álbum que vos trago não é um álbum que ouço todos os dias; muito pelo contrário, ouço esporadicamente. Há uns meses, aquando duma das fases mais frágeis e frustrantes da minha vida, dei por mim a encontrar conforto emocional no Mil Coisas Invisíveis. Daí em diante, apercebi-me de que voltava sempre a ouvir o disco quando me sentia absolutamente ansiosa, esgotada e perdida, com as minhas incertezas e inseguranças no auge (há quem chame a isso de “Síndrome do Impostor”). Cada vez que decido deliberadamente escutar esta obra é sempre como se fosse a primeira vez. Faz-se soar o primeiro verso que abre o disco – “Nascer/Nascer outra vez bem no meio da vida”. Sinto a minha frequência cardíaca acelerar. Sinto a minha pulsação arterial aumentar. Sinto arrepios por toda a parte. Sinto a música a invadir o meu interior, a percorrer cada parte do meu corpo e a acomodar-se. Transcendo descontroladamente. Desagua uma cascata de sentimentos em mim, que só termina na última faixa do álbum (“Mesmo Se Você Não Vê”). Ouve-se, por fim:
“Meu bem, não chore
Você já é o que queria ser
Respire fundo
O mundo existe dentro de você
O céu está sempre atrelado
Mesmo se você não vê
As grandes dúvidas desaparecem
Quando o sol aparecer”
Soam os últimos acordes. Faz-se silêncio. O álbum chegou ao fim. Domino novamente o meu corpo. Sinto-me leve. Sinto-me capaz de tudo. Sinto-me livre. Parece, por vezes, surreal como uma simples coletânea de canções tem o poder de trazer à tona a melhor versão de mim mesma – permite-me reconhecer e aceitar os meus sentimentos, refletir sobre as minhas prioridades, sobre as minhas escolhas e, acima de tudo, sobre a minha vida; desenvolver mecanismos de forma a lidar melhor com tudo o que se passa dentro de mim. Para além disso, que bom é sentir que não estou sozinha neste mar de vulnerabilidade. Mil Coisas Invisíveis de Tim Bernardes é o meu bote salva-vidas.
Daqui em diante, a minha ideia seria falar-vos um pouco sobre cada uma das canções que compõem este longa-duração. Mas, depois, ocorreu-me: porque não agrupá-las por temas e incitar-vos a tirarem as vossas próprias interpretações? Na verdade, uma das melhores coisas deste álbum é que nos convida a isso mesmo (a tirar as nossas próprias interpretações – por mais distintas que possam ser). Portanto, acompanhem-me nesta expedição.
Mil Coisas Invisíveis é um disco, mas poderia facilmente ser um livro. Abre com um Prólogo e termina com um Epílogo, respetivamente com as já supracitadas “Nascer, Viver, Morrer” e “Mesmo Se Você Não Vê”. Estas faixas de curta duração são o balanço perfeito de todos os assuntos que permeiam a restante obra.
Questiono-me tantas vezes sobre quem eu sou e qual o meu lugar e propósito neste mundo, mas as próximas canções sobre as quais vou falar são o meu maior lembrete para valorizar as pequenas coisas da vida, viver sempre fiel a mim mesma e ver beleza na minha própria existência – simplesmente ‘ser’. Entre medos e seguranças, angústias e esperanças, “Fases” e “Beleza Eterna” surgem em forma de desabafo e introspecção e as suas melodias celestiais dão colo aos nossos conflitos internos e corações ansiosos. Por cima de um lustroso arranjo de cordas e sopros, e de umas palmas ritmadas que nos fazem despertar emoções positivas, Tim Bernardes canta-nos também a beleza da vida em “Realmente Lindo” (uma versão dum original de Gal Costa). O tema é prolongado em “Falta” com uns acordes a remeter-nos para a música brasileira feita nos anos 60 e 70, onde Tim Bernardes soa um pouco mais tranquilo, brincando com as palavras como fazem os bons poetas. Em “Mistificar”, canta-nos que é “Hora de deixar rolar/De estar desprevenido/Pra o que pode chegar”, acompanhado por orquestrações sublimes e exuberantes, ainda que nos ofereça um refrão minimalista e aconchegante. Uma avalanche de paz e calma penetra a alma ao escutar “Leve”, com os seus arranjos simples e rítmicos. Mesmo partindo de vivências pessoais, é possível encontrar um ombro-amigo em todas estas canções.
Compor uma canção de amor nunca é uma tarefa propriamente fácil, mas Tim Bernardes faz parecer que é. Deste disco, “BB (Garupa de Moto Amarela)”, “Velha Amiga”, “Olha” e “Última Vez” são provas disso. Com uns arranjos muito próprios, há baladas para todos os gostos: para os mais apaixonados, para os mais nostálgicos, para os mais angustiados e para os mais inseguros. Num turbilhão de reflexões introspectivas, também abriu espaço para tocar, ao de leve, no tema da política em “Meus 26”. Por entre uns arranjos de cordas agudos à la Jorge Ben Jor, conduz-nos numa viagem cósmica e mística, sentindo-se o esgotamento nas oscilações de intensidade da sua voz solitária. Deste lado, os pensamentos vão-se divagando, pura e simplesmente.
Por fim, temos ainda “Esse Ar”, a canção mais fora-da-caixa do disco. Mais poética, mais lírica, mais ténue, mais misteriosa. A nível sonoro, vai desde um sintetizador a fazer-se ouvir ali e acolá até um clima acolhedor de bossa-nova. “A Balada de Tim Bernardes”, o tema mais pessoal do álbum (o título não deixa enganar), é a peça central deste Mil Coisas Invisíveis. Não foi por acaso que a deixei para o fim. Com um refrão bastante orelhudo (“E por que não cantar e por que não cantando?/La la la la”), é o retrato perfeito da passagem para a vida adulta e a necessidade e urgência de seguir em frente.
Comovente e alucinante. Tudo faz sentido na narrativa de Tim Bernardes. Por entre demasiados desalentos, ele consegue iluminar as almas perdidas com as suas palavras e melodias. Sim, uma delas sou eu. Senti na pele quando tive o privilégio de ouvir esta obra sonora excepcional ao vivo. 14 de Outubro de 2022, na Casa da Cultura, em Ílhavo: Um Tim Bernardes, sozinho ao piano, enquanto me arrancava umas quantas lágrimas entre canções. Recordo-me como se fosse ontem. O meu regresso a casa foi feito em pleno silêncio. Um concerto impactante, difícil de processar (no melhor sentido possível).
Ao fim e ao cabo, o que temos aqui é uma belíssima criação musical capaz de se tornar numa obra de arte intemporal. E, enfim, não é um disco, é uma terapia – pelo menos para quem vos escreve.