Em 2020, no seio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ALLiAN (aka LAVA) conheceu David Amaral, na altura mais conhecido pelo seu alias artístico Ari Flama. Um clique aconteceu. ALLiAN, corpo não-binário, racializado, imigrante, necessitava dar voz à poesia e aos ritmos que tinha dentro de si, e Ari Flama era um produtor multifacetado ligado à eletrónica e ao trap. Juntos, criaram aquilo que passaram a ser os alicerces do coletivo ARCANA: putaria máxima, baile funk agregador de almas e alminhas à procura de um local para bailarem em paz. Como referiu Luís Filipe Rodrigues na Time Out Lisboa, música para resolver questões de “vida ou morte”.
Nos últimos cinco anos, ARCANA tornou-se num dos mais disruptivos coletivos do Porto. Primeiro, como grupo musical, com as experiências musicais de ALLiAN com Ari Flama a darem vida a hinos como “PISTOLA” ou “GOLPE DA BONECA”; depois, como coletivo organizador de festas como a IN.TRAVA, tornando-se numa referência queer e racializada num Grande Porto ainda a encontrar espaço para discursos sobre corpos imigrantes e não-normativos.
Como qualquer coletivo, ao longo da sua existência, vários indivíduos foram deixando as suas contribuições para o universo de ARCANA. Os seus primeiros cinco anos de história estão condensados no álbum BAILE DE PERUCA, primeiro longa-duração editado em 2024 com a ajuda do Criatório, programa de apoio à criação artística da Câmara Municipal do Porto.
Nas 21 canções de BAILE DE PERUCA, que vão do baile funk até ao reggaeton com camadas de eletrónica, estão espelhadas as memórias de quem passou por ARCANA: pessoas como Bug Snapper, nome artístico do guitarrista e produtor Rui Santos (também dos Cat Soup), um dos co-produtores do álbum; o já referido Ari Flama, outro dos principais responsáveis pelos instrumentais do álbum. Nomes como Co$tanza, Jayne, lascalmas, Leexo, Odete, Puta da Silva, Phaser ou PIPA DE MA$$A são outros que surgem no álbum, amizades e camaradas de luta que emprestam as suas vivências a ARCANA. No centro disto tudo, claro, a voz e visão de ALLiAN, fatores unificadores deste universo.

Depois de algumas apresentações ao vivo em 2024, ARCANA parte agora para o Brasil para apresentar BAILE DE PERUCA até meados de abril, contando com o apoio do Shuttle, programa de ajuda à internacionalização do Município do Porto. Antes da partida para o seu país natal, a Playback falou com ALLiAN para entender as complexidades do universo do coletivo.
No interlúdio “GATILHO” cantas que “Todo o mundo vai dançar” com ARCANA. Desde o primeiro dia que isso é o objetivo do coletivo?
Inicialmente, queríamos fazer algo que juntasse dois universos musicais geograficamente bem distintos. Queríamos cruzar a cena mais eletrónica, tipo SOPHIE, Arca e Charli XCX, com a música de Linn da Quebrada, que é uma travesti de São Paulo que faz músicas experimentais com uma vertente social e política forte. Portanto, sim, a cena da dança está lá desde o início, mesmo que não tenha sido necessariamente o primeiro objetivo. Por outro lado, se pensarmos bem, até foi. Mesmo a música de Linn da Quebrada sempre foi feita para fazer as pessoas dançarem.
Como é que as dimensões de ARCANA enquanto coletivo organizador de festas e grupo musical coexistem e se relacionam?
É uma coisa quase intrínseca. Tentamos separar as coisas, mas depois mistura-se tudo. A gente faz música porque depois essa música pode fazer parte dos nossos DJ sets. Portanto, existe uma grande conexão entre esses dois universos. São sinónimos. O que a gente faz com a nossa música comunica diretamente com aquilo que a gente busca com as festas e vice-versa.
Vieste para o Porto quando?
Em 2020.
Antes ou depois da pandemia rebentar?
Logo após. Lembro-me que passei a pandemia toda no 12º ano e que depois ainda fui para o primeiro dia de aulas na faculdade com máscara.
Começaste a fazer música quando vieste para o Porto ou já tinhas experimentado produzir música antes?
Foi só mesmo depois de vir para o Porto. É algo louco porque eu vim de uma família muito musical. O meu pai teve uma banda de samba, os meus irmãos tocam na igreja e fazem parte do Ministério de Louvor. Portanto, o meu background musical é muito intrínseco a quem sou. Em casa, todo o mundo tocava instrumentos, mas eu e a minha mãe gostávamos mais de cantar. Depois, quando estava no 11º ano, tentei fazer uma banda, mas não chegou a acontecer. Quando vim para a faculdade, conheci o Davi, que na altura era conhecido por Ari Flama e que é o produtor da Apuros, e senti que ele era alguém com visão para fazer um álbum comigo. Ele tinha bom gosto, curtia cenas como Mc Carol, mas não tinha produzido funk com ninguém. Ele fazia eletrónica, tinha algumas cenas de trap, mas funk? Não tinha experimentado. Então, juntamo-nos. Ele produziu grande parte do disco nessa altura. Eu ajudei-o com a composição e ainda escrevi as letras.
Aprendeste a cantar na igreja? Lembro-me que o Alex D’Alva Teixeira teve um percurso semelhante àquilo que descreves.
Eu adoro o Alex e já trocamos há algum tempo carícias online [risos]. Não tive formação de canto dentro da igreja, mas a igreja foi o meu primeiro contacto com a arte e isso moldou muito o artista que sou hoje. Dentro da igreja, a maioria das pessoas com quem conversava e que frequentavam a minha casa eram também pessoas racializadas que ouviam hip-hop e rap, por exemplo, que são movimentos com uma carga política e social muito grande. Essas pessoas que eram, digamos, mais “alternas”, criaram um grupo de hip-hop na igreja, que foi onde comecei a dançar hip-hop e onde experimentei fazer circo. Contudo, nunca tive coragem de ir cantar no louvor. Até porque ser LGBT dentro de um cenário evangélico não é a melhor coisa do mundo. As pessoas fazem comentários e piadas, e uma pessoa não fica com muita vontade de cantar sozinho e prefere fazer coisas em grupo.
Que impacto tem esse teu percurso inicial na dança e na performance no universo de ARCANA?
A dança e o teatro fazem muito parte do nosso mundo porque são performances que têm muito a ver com a corporalidade. E eu, enquanto pessoa que acaba por servir como, digamos, porta-voz de ARCANA, tenho muitas vezes o meu corpo a representar o lado performativo de ARCANA. Eu sou cross-dresser e nas festas, gosto de me vestir de maneira feminina e isso dá-me muita força. Posso estar presente na festa e sentir-me gostosa e isso permite-me mexer o meu corpo de outra maneira porque permite-me explorar o meu lado feminino. A performance de ARCANA é muito influenciada pelo universo do drag, que é um universo que me fascina imenso desde que vi RuPaul’s Drag Race pela primeira vez com 14 anos – à escondida dos meus pais, obviamente [risos]. E aqui no Porto, quando aparece uma pessoa vestida desta forma, quando aparece um corpo dissidente, ele acaba por chocar. As pessoas ficam curiosas. E isso dá-me ainda mais vontade de fazer a ligação entre a performance, o transformismo e a música. Em palco, eu me chamo de LAVA. É uma personagem que criei no 11º ano quando senti imensa raiva e não sabia como a exteriorizar. Então, inventei a LAVA, que representa esse lado mais raivoso meu e que se liga muito à força elétrica e enérgica da performance. E como sou sagitariana nata, faz todo o sentido [risos]. Mas lá está, LAVA já existia antes de ARCANA ser uma cena e queria que LAVA fizesse parte da minha prática artística de alguma forma. Quando vim para a Faculdade de Letras e ARCANA nasceu, percebi que, com as festas que começamos a organizar, era possível dar vida a LAVA com ARCANA. As nossas festas são muito focadas em performances também por causa disso. Seguimos o exemplo de coletivos como a Mamba Negra, o Coletivo Lâmina ou o Coletivo 220, que juntam esse lado performativo com o musical. Porque quando você está na pista e vê alguém dançando, também se sente menos julgado e apercebe-se que pode dançar de maneira livre e estranha. Como lhe apetecer. Se quiser, pode ficar só olhando no canto da venue para as pessoas e também está tudo bem com isso [risos].
O ano passado, para um artigo que escrevi sobre a cultura noturna pela ocasião dos 50 anos do 25 de abril, o Farofa enunciou que a evolução da politização da noite da cidade Porto era um “fenómeno lento”. É algo que também sentes? Consegues vislumbrar o impacto que festas como ARCANA têm no tecido cultural e social da cidade?
Essa é uma ótima pergunta, mas é bem complexa. O impacto do nosso movimento é visível – não há como negar. Há vários coletivos que nasceram depois de ARCANA que dizem que nós lhes demos legitimidade para serem criados – como, por exemplo, o Núcleo de Imigrantes da Faculdade de Belas Artes. Agora, estes coletivos estão inseridos dentro da minha bolha, que é a bolha queer, a bolha rave. Portanto, apesar de existir impacto até dentro de universidades já, esse impacto continua a ser pequeno quando comparado com a grande massa de eventos que ocorrem na cidade. Está muito contido na marcha LGBT, no Pride Month, e em festas como o Halloween ou o Carnaval, que são festas que, pela sua “estranheza”, podem ser queer. E o impacto não pode ficar apenas contido nestes lugares. Se ficar, então durante o resto do ano ficamos à mercê de que só vamos tocar ou organizar festas em clubes que entendem a nossa proposta ou em eventos com curadores que querem mesmo saber do projeto político que pretendemos para a sociedade. E claro, isto tem muito a ver com dinheiro. A sociedade ocidental tem um problema muito grande em falar de dinheiro e em falar de capitalismo e do quanto isso afeta a propagação de movimentos como o nosso. É um pouco triste que não consigamos realizar os projetos que sonhamos por causa de falta de financiamento ou porque não conseguimos encontrar pessoas que confiem no nosso projeto. Até porque, até agora, provamos sempre o contrário. Há público para o que fazemos e nós queremos conectar esse público com os coletivos, instituições e clubes. A união faz a força porque a sociedade não é feita de indivíduos. A sociedade é feita de redes e todo o mundo está conectado. No Norte, ainda há muito caminho a percorrer nesse aspeto. Nota-se muito a falta de coletivos que incluam outro tipo de corpos e vivências que façam a cultura acontecer. Felizmente, nos últimos anos isso tem mudado, e têm surgido mais coletivos que envolvem pessoas negras e imigrantes que tentaram fazer coisas. E existe uma rede de apoio entre estes coletivos, da qual ARCANA faz parte. Temos grupos em que falamos para tentarmos não marcar festas nas mesmas datas para que ninguém saia prejudicado e para que toda a gente consiga concretizar os seus projetos e sonhos. Para conseguirmos fazer o que fazemos, foi preciso o apoio de casas como o Passos Manuel, que é essencial para a cidade do Porto andar para a frente. A Maria Ferreira é uma pessoa mesmo muito querida na trajetória de ARCANA. Depois, é curioso. No Porto, todas as pessoas que nos ajudaram são mulheres. Isso é muito importante de sublinhar e diz muito também da relação entre capitalismo e patriarcado. Apesar disso, em Lisboa, a primeira pessoa que me contratou foi um homem, o Viegas, que convidou ARCANA para tocar na ARVI.
Esta conversa lembra-me algo que a Liv Wynter, que organiza em Londres uma festa anarco-queer chamada How To Catch a Pig, me disse há uns meses para uma reportagem, que era crucial que “existisse financiamento institucional para festas radicais”. Dado que a criação do BAILE DE PERUCA foi apoiada pelo programa Criatório, que importância dás a esse tipo de financiamento para a execução de projetos como ARCANA?
É muito importante o apoio de instituições e desses fundos públicos para o caminho que queremos traçar. Claro que também fazem parte desse caminho outros coletivos que querem construir o mesmo futuro que nós. Mas se não existissem estes apoios, era muito difícil. Porque tu precisas de autoestima para conseguir legitimar o trabalho que estás a fazer. Isso ajuda a que você se entenda como alguém que é merecedor de ajuda e que consegue evoluir também com a ajuda dos outros. Porém, o Criatório ter-nos apoiado foi uma grande surpresa. Não estávamos nada à espera de que fôssemos um dos projetos vencedores. Mas isso só demonstra que ARCANA é um projeto importante e que os próprios órgãos de cultura da Câmara dão valor a isso. Até porque nós não ganhamos só o apoio do Criatório. Ganhamos também o apoio do Shuttle, que é a razão pela qual vamos ao Brasil. Isto são coisas importantes. Contudo, tenho medo, e lembro-me de falar disto no podcast da Luísa Cativo, de que fiquemos dependentes destes apoios para sempre. Se ficarmos, vamos ficar sempre presos num loop de tentativa-erro e de ansiedade para garantir que conseguimos fazer os nossos projetos. Isso também é muito desgastante. Não existe solidez nesta profissão e não há maneira de subsistir de maneira tranquila. Ao contrário de outros trabalhos, não existem tantos direitos trabalhistas, não há seguro de saúde nem de desemprego. Sei que existem tentativas, até por parte do Governo, de tentar melhorar esse aspeto de ser artista, mas ainda existem muitas falhas. Um artista do underground a tentar perceber como começar a entrar neste mundo, não sabe como fazer um recibo ou como abrir atividade nas Finanças. No início do coletivo, tivemos de lidar com isso de forma muito rápida e dura. Se não tivéssemos tido ajuda de pessoas que entendiam do assunto, tínhamos passado muitas dificuldades e provavelmente nem íamos saber da existência do Criatório e do Shuttle. Muitos desses apoios estão muito escondidos ainda por camadas de burocracia que são muito complicadas de ultrapassar porque possuem linguagem extremamente complexa e que nem toda a gente é capaz de entender. Neste mundo pós-moderno, precisamos de criar ferramentas para conseguirmos hackear este sistema. Isso é algo que me interessa muito. Quero que ARCANA seja um hacker cultural porque é isso que a gente faz. A gente hackeou a bolha cultural portuense e as pessoas da velha guarda, aquelas mais elitistas, estão tremendo com a nossa chegada. E é bom que tremam. Nós hackeamos o sistema e vamos continuar a fazê-lo.

É curioso falares de hacking porque, se pensarmos na ligação musical de ARCANA a artistas como SOPHIE e Arca, como mencionaste no início desta conversa, estes são artistas que fazem uma espécie de “hacking sonoro”. Acho que ARCANA também tem presente alguma coisa disso na música.
Com certeza. Nós queríamos que o BAILE DE PERUCA fosse muito experimental. Queríamos que o disco criasse este imaginário futurista de não-normatividade. Faz sentido quando pensamos nas letras das canções, que são bastante politizadas, com essa visão. É a junção desses mundos que faz com que o universo do nosso coletivo seja tão potente e coerente. A capa do álbum também fala sobre essa colisão de mundos. Falamos com uma artista 3D [Filipa Combo] porque queríamos mesmo colocar os nossos corpos dentro desse mundo cyber futurista, rave, punk, anarca. Queríamos tentar criar uma cena que parecia uma utopia, mas que existe na vida real. Queríamos que existissem essas camadas de sujeira na música e queríamos ter orgulho nisso. Porque queríamos dar a entender que, sim, a gente pertence a um universo que tem droga, sim, que tem a dança presente, também, mas que é frágil. Dentro desse universo, há espaço para as pessoas que sentem que não pertencem a nenhum lugar possam sentir que pertencem a algo ao lado de outras pessoas que sentem o mesmo que elas.
Música de outcasts para outcasts [risos]!
Exatamente! [Risos]
A criação do BAILE DE PERUCA envolveu várias pessoas, mas uma das mais presentes na criação do álbum é o Rui Santos. Apesar de estar familiarizado com o trabalho dele como Bug Snapper, na minha cabeça o Rui é o Rui de Cat Soup, o gajo das guitarras estranhas do pós-hardcore. Como é que o Rui surgiu na equação de ARCANA?
Nós conhecemos o Rui quando a Luísa, que é uma pessoa que já fez parte do coletivo, o convidou para vir fazer um DJ set ao primeiro festival que organizamos. A gente amou o DJ set dele e curtimos muito do universo sonoro de Bug Snapper porque, lá está, é super cyber. Adoro aquele estilo de sintetizadores. Passado algum tempo desse festival, convidamos o Rui para entrar no coletivo e ele aceitou. Tudo o que está no disco, seja um sintetizador ou uma guitarra estranha, é da responsabilidade do Rui. Ele também produziu o interlúdio “APAGÃO” à sua maneira para ligarmos o universo sonoro dele ao conceito do álbum. Mas o Rui surgiu já muito na fase de finalização do álbum – foi com ele que finalizei o disco. Ouvimos as músicas de início ao fim para tentarmos perceber como as ordenarmos para que o disco fizesse sentido de início ao fim. Queríamos que o álbum funcionasse como uma espécie de viagem sonora guiada pela gente, que é algo que consigo ver também que ele faz com as coisas de Bug Snapper.
Acho que o BAILE DE PERUCA funciona como se fosse um DJ set.
É muito verdade, sim. Acho que isso está muito ligado à nossa ideia de tentarmos maximizar as sensações com aquilo que fazemos.
O BAILE DE PERUCA começou a ser criado há cinco anos. Como nasceram as primeiras canções do álbum e como mudaram ao longo do tempo?
A primeira canção a ser feita foi a “PISTOLA”, que foi o meu bebé e do Davi. Foi o primeiro funk que eu fiz na vida e a letra surgiu-me durante uma aula na faculdade – aquelas frases safadas, putaria máxima [risos]. Depois de eu e o Davi termos feito a “PISTOLA”, ainda não estávamos a levar nada disto a sério. Se calhar, com aquilo, poderíamos um dia fazer um EP ou álbum. Mas era tudo na descontração, tudo super informal, queríamos divertir-nos a fazer algo. Até porque o Davi tinha um método específico para fazer as coisas, de gravar uma coisa e partir logo para a próxima. Foi assim que fizemos a “DINERO”, a “PISTOLA”, a “GOLPE DA BONECA” e a “SENTA”. E a ideia era todas as músicas terem um género musical diferente. A “PISTOLA” é um funk eletrónico, a “GOLPE DA BONECA” é mais vogue-beats e cunty, a “DINERO” um reggaeton desconstruído, a “SENTA” tem um som mais próximo do UK bass. Mas nada disso foi uma cena consciente, surgiu tudo de forma natural. Com o passar do tempo, à medida que tínhamos mais música, achávamos que podíamos juntar tudo num disco. Depois, os shows. O primeiro show foi num after de um desfile no Passos Manuel, que foi onde o Viegas me viu também pela primeira vez e lançou o convite de ir tocar à ARVI. A partir daí, começamos a pensar no que seria o álbum, o que seria a capa, o que seria o universo de ARCANA. Mas, para isso, era preciso financiamento. Daí a candidatura ao Criatório. O Rui, lá está, depois entra já perto do processo de finalizar o disco e sequenciar a viagem do álbum. Mas isso tudo demorou imenso tempo para concretizar – para aí uns três anos. Também com as festas, o álbum foi colocado para segundo plano durante algum tempo e só voltou a ganhar prioridade depois de recebermos o apoio do Criatório. Com esse apoio, o paradigma mudou. Focamo-nos no disco e tentamos finalizar as coisas com pés e cabeça.
E pelo caminho foram apanhando pessoas que aparecem no álbum, como a Leexo d’As Docinhas, o Co$tanza ou a Puta da Silva. Como é que essas pessoas surgem na narrativa de BAILE DE PERUCA?
É muito linda a minha conexão com essas pessoas porque ARCANA meio que estourou no cenário e começamos a receber muitas mensagens e a ter muitos novos seguidores. Vem tudo do rolê, das festas, das ligações que se cria neste meio. Lembro-me que conheci o Co$tanza por causa disso. Eu fui ouvir as cenas dele, curti imenso da vibe, e disse-lhe que lhe queria ir visitar a Lisboa e acabei a passar umas semanas em Lisboa por causa disso. Por essa altura, também produzi coisas com a Dakoi, que não aparece no álbum, mas que acabou a fazer um remix da “GOLPE DA BONECA”. O Co$tanza acabou a produzir a “EUROBOY” e fez ainda uma das metades da “GOLPE DA LADRA”. A “EUROBOY” também tem presente lascalmas, que vem comigo ao Brasil. Elu é uma pessoa trans e não-binária que nasceu em Portugal mas que divide muito o seu tempo entre Portugal e Brasil. Elu está presente desde o início em ARCANA, mas nunca esteve totalmente dentro do coletivo. Esteve sempre nas festas que fizemos, ajudou a escrever algumas das músicas, e conheci lascalmas porque elu é amigue de malta ligada, lá está, às Docinhas. Essas baddies do Porto são super fortes e super punk e sempre quis fazer algo com a Leexo desde que fiquei obcecado com o trabalho dela. Foi incrível fazer a troca com ela na “GLAMOUR”. A PIPA DE MA$$A surgiu de irmos a festas em Lisboa e dela ser amiga do Co$tanza – eu já gostava dela do trabalho dela porque toda a gente andou obcecada com a “beto de vilamoura <3” [risos]. Portugal é mesmo pequeno e os artistas estão meio que todos ligados mesmo que não saibam [risos]. O Phaser, que também foi colega de composição neste disco na “HELLO KITTY”, também é amigo deles, por exemplo. E claro, a Puta da Silva. A primeira vez que fui a Lisboa dormi na Casa T porque não tinha casa para ficar e fui sempre bem acolhido na Casa T. Foi incrível conhecer esse pessoal trans, racionalizado e brasileiro, que é imigrante, funkeiro, macumbeiro. Tudo isso tem a ver com a pessoa que sou. E como a Linn da Quebrada é uma das grandes influências deste disco, achei que fazia sentido ter uma pessoa que tivesse uma ligação semelhante a ela como nós temos – daí a Puta da Silva. Ainda bem que o Criatório existiu, porque sem esse apoio era muito complicado ter ido a Lisboa e ter feito estas ligações musicais bonitas acontecerem.
Apesar do disco ter uma sonoridade muito maximalista e “metálica”, sinto que tem presente um lado vulnerável que surge, acima de tudo, no interlúdio “VOU-ME SUSTENTAR DE SAIA” e na recitação do Monólogo de Orfeu na última faixa. Como é que essa vulnerabilidade encontra espaço no universo de ARCANA?
A Solange é uma artista que é uma grande influência porque ela consegue ser super empoderada e falar de coisas, digamos, mais políticas, sem nunca perder o seu lado vulnerável e intimista. Eu revejo-me nisso enquanto artista porque permite criar uma conexão com as pessoas. Nós não somos apenas a imagem que pintamos nas redes. Somos pessoas que existem e que também passam por momentos difíceis. Acho que para a comunidade LGBT também é super importante relembrar que temos a possibilidade de escolher a nossa própria família caso a nossa não nos permita ser quem somos. Isso é muito importante para mim e vem de um lado muito vulnerável. Fazer as festas não é só os cartazes bonitos ou as fotografias das pessoas looking all cunt. Isso é muito importante e tem muita legitimidade, mas é importante que a política também seja feita com base numa ideia de amor e conexão real. A “VOU-ME SUSTENTAR DE SAIA” é uma canção que surge inspirada pelo momento em que a minha mãe descobriu que eu fazia performance e jogou as minhas roupas femininas no lixo. Eu fugi de casa depois disso e tive pela primeira vez pensamentos suicidas porque o que senti quando a minha mãe jogou as minhas roupas no lixo foi que ela também me estava a jogar no lixo. Aquilo fazia parte de mim – aliás, faz. E eu gravei esse áudio porque eu ia conseguir sustentar-me sozinha. Foi preciso muita força para conseguir estar viva, continuar fazendo a minha arte e viver do jeito que sou. Quis trazer esses momentos de reflexão para o álbum também. Sim, o disco é muito animado, é muito gritado, mas também tem esses momentos onde, de repente, [silêncio] – respira. O álbum termina assim com o Monólogo de Orfeu, que acabou a ser comprado pelo Rui Catalão para ser utilizado numa peça do Teatro Municipal do Porto no ano passado. Ele achou que a ligação entre a peça dele e o monólogo era muito importante porque a primeira companhia de teatro negra do Brasil chamava-se Orfeu Negro. Como a peça era inspirada pela imigração, ele achou que eu, pelo meu background e pelas minhas vivências, poderia apresentar isso como parte da peça dele. E foi muito bonito fazer isso num grande teatro como o Teatro Municipal do Porto.
É interessante o quanto um disco que tem um som tão digital esteja tão preocupado em existir no mundo real, nas ligações que pode criar.
Exatamente. Se as coisas ficarem apenas pelo digital, sinto que apenas 50% do processo foi feito. É importante também existir os outros 50%, que é o olho no olho, a pele na pele. É muito lindo quando a vida é feita de toque também. A gente precisa do coletivo, não tem como. Este mundo tenta criar a ideia de individualidade e da meritocracia como sinónimos de progresso e… não somos feitos assim. A gente nunca chegará a lado nenhum sem ter conversas com outras pessoas, sem nunca pedir ajuda, sem nunca ser vulnerável. É muito bonito perceber que só através do coletivo é que a gente consegue fazer a sociedade se mover. Mas eu sou comunista, então sou suspeita de falar deste assunto [risos]. Se não pensarmos no coletivo, o mundo vai acabar.
Vais estar agora no Brasil até meados de abril. Quais são as suas expectativas para esse regresso e como sentes que ARCANA irá ser recebida por lá?
Estou muito feliz! Meu deus, nem consigo colocar em palavras. Já não volto ao Brasil desde 2017. Tinha 15 anos nessa altura e agora vou voltar com 22, com outra cabeça e mentalidade. Além disso, vou voltar com uma pessoa do coletivo para fazer performance comigo e é uma pessoa com quem sempre sonhei poder fazer isso. Vai ser bonito apresentar este projeto para pessoas negras e brasileiras que entendem realmente as nossas referências. Não estou a dizer que aqui em Portugal as pessoas não entendam, mas talvez não entendam tão diretamente como essas pessoas. A gente sabe que no Brasil o nosso corpo vai ser bem recebido. Cá, nas festas que organizamos, as frontlines são sempre formadas por pessoas brasileiras. Temos sempre muito pessoal brasileiro presente nas nossas festas. Ir apresentar o álbum ao Brasil vai ser uma experiência muito enriquecedora, não tenho dúvidas. A expectativa está lá no alto. Vamos ao Rio de Janeiro, a São Paulo, e queremos muito fazer festa na favela, para pessoas em situação de vulnerabilidade social. O nosso plano é mesmo tentar levar esta mistura de um pouco do Brasil e da Europa com a performance e transformismo a esses lugares da periferia.
Fotografia de destaque: Filipa Combo