A vitória da borboleta encasulada: 10 anos de To Pimp A Butterfly

From a peasant to a prince to a motherfuckin’ king”. Um dos álbuns mais importantes da história do hip-hop (e, atrevo-me a dizer, da indústria musical como um todo)  celebra este sábado (15) uma década. A história, para muitos, é conhecida. To Pimp A Butterfly é uma epopeia sobre racismo, dinheiro, conflito interno, metamorfose, amor… Essencialmente, é um álbum sobre a vida, sobre as complexidades da vida.

Nunca me vou esquecer da primeira vez que tive o privilégio de ouvir “King Kunta”. No balneário masculino da minha escola secundária, depois de uma aula de educação física, um colega meu estava a meter a música bem alta. Reconheci a voz do rapper, mas nunca tinha ouvido nada igual àquilo. A música em que Kendrick Lamar se declara ao mundo como “rei” do hip-hop num braggadocio quase sem paralelo na sua discografia foi uma das músicas que mais ouvi durante a adolescência. Esse momento foi a minha introdução ao que acredito ser o melhor álbum de hip-hop de sempre – a crítica especializada, na generalidade, concorda. Kendrick Lamar lançou o seu magnum opus a 15 de março de 2015. E o que dizer que ainda não tenha sido dito sobre um álbum que mudou para sempre a história da música?

Com contribuições imprescindíveis de artistas como Sounwave (co-produtor do álbum), Robert Glasper (“Wesley’s Theory”), Terrace Martin (“For Free? (Interlude)”), Thundercat (“Wesley’s Theory”, “These Walls” e “Hood Politics”), Knxwledge (“Momma”), George Clinton (“Wesley’s Theory”), Flying Lotus (“Wesley’s Theory”) e Rapsody (“Complexion (A Zulu Love)”), entre tantos outros, este álbum é também uma ode à versatilidade e imortalidade do hip-hop e da cultura negra. Os temas de TPAB são bastante influenciados por samples ou passagens de jazz e funk, géneros que contribuíram significativamente para formar a visão artística de Kendrick desde cedo.

Numa entrevista ao The New York Times em 2015, o artista dizia que era um veículo pelo qual Deus espalha a sua palavra (curiosamente, a religião e a redenção foram um tema explorado com mais afinco em Mr. Morale & The Big Steppers, de 2022), numa tentativa de conseguir “purificar” um género musical que há muito é visto apenas como manifestação de opulência, misoginia, homofobia e ganância. Mas Kendrick quis ir mais longe do que isso. Quis falar da sua realidade de uma forma que fosse compreensível para todos. “É mais do que uma responsabilidade, é uma vocação”, disse o artista na mesma entrevista.

Entre os seus conterrâneos, Kendrick é dos poucos que ainda continua com uma reputação pública bastante respeitada entre os pares, e que é definida pela contínua procura de conhecimento e inovação sónica na sua discografia. Um exemplo claro disso é o seu mais recente LP GNX (2024), um álbum caracterizado por beats da West Coast e uma agressividade lírica muito diferente (a lembrar o saudoso Drakeo The Ruler) da que encontramos em To Pimp A Butterfly, relembrando good kid, m.A.A.d city (2012), um já clássico do artista e disco anterior a TPAB. Nesse álbum, Kendrick utilizava a lírica para espalhar o gospel da sua vida; em TPAB, simplesmente ligou essas histórias a uma musicalidade mais intensa, mais conectada com a história da música negra – daí a influência mais marcada do jazz, da soul, do funk.

K.Dot (nome artístico usado pelo rapper antes de se assumir definitivamente como Kendrick Lamar) procura, em várias partes de To Pimp A Butterfly, mostrar as diversas faces do mesmo prisma. Começa com “Wesley’s Theory”, uma intro que resume bastante bem o conceito do álbum. Numa entrevista para a MTV, Kendrick comentou que não queria que a sua ascensão ao sucesso o corrompesse, como aconteceu a vários outros conterrâneos e figuras da história do hip-hop. Pelo contrário, Kendrick pretendia “ensinar” aos jovens rappers, sobretudo aos jovens rappers de raça negra oriundos de bairros precários, que não se devem deixar levar por todas as luxúrias ao seu alcance, caso contrário o “Uncle Sam” fará com que o ciclo se perpetue.

Esta ideia é passada em “Institutionalized”, uma das minhas músicas preferidas do álbum. Com um coro de Bilal e bridge de Snoop Dogg, a música transporta-nos para um universo cartoony onde algumas das questões integrais do álbum são contadas como uma história para crianças. “Shit don’t change until you get up and wash yo’ ass, *****” é o mantra que Bilal canta no coro e que reforça a temática da música. Apesar da força e violência do estado americano contra a diáspora negra, Kendrick relembra que o mais importante é levantar a cabeça e lutar pelos seus direitos e dos seus camaradas, de modo a quebrar o ciclo de violência institucional. Em “These Walls”, por outro lado, o rapper faz uma analogia direta a sexo, mais concretamente à vagina da mulher com quem deseja estar, numa tentativa de aligeirar o tom e relembrar que estes desejos carnais também são algo que faz parte da vida dele e sem os quais não consegue viver. Já em To Pimp a Butterfly Kendrick tentava revelar algo que mais tarde espelharia: ele não era um messias, mas alguém com uma complexidade muito maior. Mas a música, essa, era messiânica. Não havia como fugir.

No tema seguinte, o brilhante “u”, Kendrick rima sobre uma das situações mais duras com que se defrontou: a morte de um amigo enquanto se encontrava fora do país. A reflexão feita pelo rapper de Compton envolve aquilo a que chama survivor’s guilt (a culpa de ter sobrevivido a um evento fatídico), em que Kendrick se encontra numa espiral depressiva que parece inescapável. Contudo, apesar do que aconteceu na sua vida, consegue sempre voltar a casa, com a ajuda da sua “Momma”. Aqui, o artista fala de peito inchado sobre ter voltado ao sítio onde nasceu e contar à mãe tudo aquilo que já aprendeu – “I know wisdom, I know bad religion, I know good karma”- apenas para chegar ao fim e perceber que, afinal, não sabe tanto quanto achava.

Mais perto do fim, chega aquele que é o meu som preferido e, talvez, o som mais marcante de todo o álbum – “The Blacker The Berry”. Numa era política em que continuamos a ter pessoas encostadas à parede, violentadas e assassinadas única e exclusivamente pelo seu tom de pele, mais do que nunca é importante revisitarmos e refletirmos sobre músicas como esta. Em “The Blacker The Berry”, o rapper de Compton faz uma verdadeira crítica social aos problemas criados pelo racismo institucional. Começa por dizer a frase, agora icónica, “I’m the biggest hypocrite of 2015”, enquanto condena o estado americano, particularmente os americanos caucasianos, por serem cúmplices deste aprisionamento do artista, exprimindo a raiva que isso o faz sentir. Em vários dos versos desta música, Kendrick dá exemplos de preconceitos já muito utilizados nos media (“Or eat watermelon, chicken, and Kool-Aid on weekdays / Or jump high enough to get Michael Jordan endorsements”) como uma maneira de libertação do estrangulamento que o capitalismo e a consequente subjugação de pessoas de raça negra. Kendrick exige aos seus ouvintes que questionem esses julgamentos discriminatórios, as leis criadas para aprisionar mais afro-americanos – como foi o caso da “Three Strikes Law”, que prendeu muitos afro-americanos pelo consumo e tráfico de crack – e quem as faz cumprir, virando-se o foco, mais uma vez, para o racismo institucional que é base da história dos EUA.

Kendrick sempre se apresentou como um “rapper do povo”, não apenas pela sua discografia mas também pela personalidade que naturalmente revela quando está em público. Nesse aspeto, To Pimp A Butterfly é também uma homenagem a 2Pac, na medida em que a energia apaixonada e contagiante com que aborda muitos dos temas, como a consciência de classe, abusos raciais e policiais, lembram o autor de All Eyez On Me (1996). Na última faixa do álbum – “Mortal Man” – Kendrick recria uma conversa (falsa) com 2Pac utilizando excertos de uma entrevista que Tupac deu à P3 | Sveriges Radio em 1994. Muitos dos temas do álbum interligam-se neste último momento. K.Dot revê-se bastante em 2Pac porque também ele sente ser um hustler como 2Pac foi, uma pessoa que lutou por tudo na sua vida, mesmo quando as portas lhe foram fechadas desde cedo. “All good things come to those who stay true” responde Pac à pergunta de Kendrick sobre como conseguiu manter a sua sanidade mental. E, na verdade, é também por essas palavras que Kendrick se tem guiado ao longo da sua carreira. Tentando ser a sua melhor versão possível, porque nunca saberemos ao certo quando as coisas podem mudar de um momento para o outro.

Embora em 2025 Kendrick Lamar seja visto por uma boa parte da população mundial como o grande vencedor da “batalha” que disputou com Drake (sobretudo com a conquista de cinco Grammys pela diss “Not Like Us” e a sua coroação definitiva no Super Bowl halftime show deste ano), acredito que o seu legado de peacemaker seja mantido, mesmo tendo feito parte deste conflito histórico. No entanto, é devido a álbuns como To Pimp A Butterfly que Kendrick se destaca entre os seus pares e pelo qual se tornará eterno. Para mim, ele é a personificação daquilo que considero ser um artista geracional. Um artista que olha para os problemas à sua volta e os expõe de diferentes ângulos, e que contribui fisicamente e artisticamente para a sua comunidade. Como se não bastasse, conseguiu sempre fazer isso de forma genuinamente sincera e apaixonada. A vida de Kendrick é a sua música. De consumo a reciprocidade e de larva a borboleta.

Kendrick Lamar atua com SZA no Estádio do Restelo no dia 27 de julho. Podes adquirir bilhetes aqui.

Portocovense de origem. Musicófilo e cinéfilo à noite (dentro dos possíveis), e marketeer durante o dia. Escreveu para a Devaneio (ex-revista do Litoral Alentejano) e foi co-criador do podcast “Em Ponto Rebuçado”, um podcast cultural criado em conjunto com o irmão (António Afonso).
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