Em 2010, os Linda Martini cantavam “Tu nunca foste de voltar atrás / Mesmo querendo não eras capaz” em “Ameaça Menor”, homenagem aos Minor Threat e uma das mais pujantes canções de Casa Ocupada, disco seminal do pós-hardcore português. É uma frase que bem pode ser aplicada como mantra à discografia da banda. Os Linda Martini nunca olharam para o passado com o intuito de repetir fórmulas. Olharam para o passado como fonte de aprendizagem para abordar o futuro com a capacidade de esboçar a música que quisessem da forma que quisessem.
Em Passa-Montanhas, sétimo álbum da banda originária da Linha de Sintra e o terceiro consecutivo gravado por Santi García na Catalunha, o arroz servido é mais do mesmo (elogio), mas os acompanhamentos dispostos na mesa são diferentes do passado mais recente da banda, mais semelhantes àqueles que pairavam sobre a banda na altura de Casa Ocupada. Para criarem Passa-Montanhas, os Linda Martini foram mesmo forçados a olhar para trás (até a capa do álbum remete para o seu passado enquanto putos da Linha de Sintra) e, mais do que nunca, para o seu (e o nosso) presente.
Pontualmente na sua discografia, os Linda Martini foram abertamente políticos. Em malhas como “E Não Sobrou Ninguém”, “Febril (Tanto Mar)”, “Partir Para Ficar” (com a invocação da sample de “FMI” de José Mário Branco) ou “A Corda do Elefante Sem Corda”, a banda nunca escondeu propriamente as suas “cores” políticas. Porém, nunca o estado das coisas marcou tão fortemente a sua música como em Passa-Montanhas. Só assim puderam aprender a “conversar melhor”, como canta André Henriques em “Pé de Guerra”, canção que deambula entre a higiene com pouca distorção de Sirumba (2016) e as explosões catárticas de Olhos de Mongol (2006). É uma das grandes malhas de Passa-Montanhas, talvez mesmo a melhor canção que os Linda Martini fizeram desde “Boca de Sal”.
Tanto enquanto fã da banda como crítico, é impossível dissociar a existência de Passa-Montanhas sem ter em conta os dois últimos anos da história, que já é longa, dos Linda Martini. No início de 2022, mesmo antes do lançamento de ERRÔR, chegou a notícia de que Pedro Geraldes, guitarrista fundador do grupo, saía da banda. Não foi a primeira vez que os Linda Martini sofreram uma perda assim. Entre o lançamento do EP Marsupial (2008) e Casa Ocupada, os Linda Martini passaram de quinteto a quarteto quando Sérgio Lemos, outro guitarrista membro fundador e um dos principais obreiros da direção musical da banda, abandonou os Linda. Na altura, em resposta, os Linda Martini lançaram o cru e direto Casa Ocupada, disco que homenageia as suas raízes no punk hardcore lisboeta do início dos anos 2000. Ligaram-se ao passado. Agora, com Passa-Montanhas, onde André Henriques (voz, guitarra, letra), Cláudia Guerreiro (baixo) e Hélio Morais (bateria) sentam também à mesa Rui Carvalho (aka Filho da Mãe, guitarra), alguém presente na história da banda desde o dia um, os Linda Martini revelam um álbum que encapsula os vários passados musicais da banda.
Desde já, é imperativo relembrar que o próprio passado de Rui Carvalho não é apenas enquanto Filho da Mãe, guitarrista de folk bonita: outrora, Rui Carvalho também esteve ligado ao pós-hardcore lisboeta dos anos 2000, fazendo parte de bandas como If Lucy Fell (com Hélio Morais). Ao escutar Passa-Montanhas, é complicado não encarar a sua entrada na banda como incendiária para o caldeirão criativo dos Linda Martini. Às vezes, a mudança é mesmo necessária – mesmo que essa mudança se torne assombração durante algum tempo. Em “Assombro”, canção cintilante a lembrar uns Brand New pela altura de Science Fiction, questionam: “Será que te assombro como tu me assombras?” O passado tem destas coisas. Temos é de aprender a lidar com ele. Em Passa-Montanhas, os Linda Martini assim o tentam fazer.
Vou admitir uma coisa: estava com expectativas baixas para Passa-Montanhas por duas razões. Razão número um: não adorei particularmente nenhum dos singles. Razão número dois: com o passar do tempo, percebi que ERRÔR é facilmente o disco do qual menos gosto de Linda Martini, que é de longe a minha banda portuguesa favorita de sempre. Se não fossem os Linda Martini, não era viciado em pós-hardcore, não curtia guitarras bizarras, não ouvia bandas como os Botch, os At The Drive-In, os Drive Like Jehu.
Portanto, quando escutei ERRÔR pela primeira vez há três anos com a excitação de ouvir um novo disco de Linda Martini, lembro-me de achar bem interessante o teor pesado (em sonoridade) e melancólico (em poesia) do álbum. Porém, ao longo destes três anos, praticamente nunca mais escutei ERRÔR. Além disso, quando recentemente voltei ao álbum, senti que parecia não ter fim à vista. Passa-Montanhas é mais longo que ERRÔR, mas parece muito mais curto (são ambos os dois discos mais longos de Linda Martini, contudo). Já ouvi Passa-Montanhas várias vezes antes e depois de sair e não me sinto farto de o escutar uma e outra vez. Isso é bom.
A razão pela qual gosto mais de Passa-Montanhas face ao seu predecessor é a seguinte: as canções de Passa-Montanhas, na sua generalidade, são menos diretas comparativamente às de ERRÔR. Por outras palavras, não obedecem à estrutura de canção que os Linda Martini abraçaram com mais afinco no pós-Sirumba. Alguns dos momentos mais estranhos da discografia dos Linda escutam-se em ERRÔR (o riff de “Objeções à Firmeza do Olhar”, o silêncio à la “Diamond Stuff” dos black midi em “Sorriu”), mas depois parece que a canção e a escrita não acompanham a estranheza dos riffs e da produção. Em ERRÔR, raramente encontramos um equilíbrio entre a canção, o ruído e a quietude. Em Passa-Montanhas, existe um reencontro com esse equilíbrio. Não faltam canções onde a banda deambula entre picos e vales (montanhas, percebem?), de forma semelhante àquela que apresentaram no início da sua discografia.

Contudo, existem momentos em Passa-Montanhas que entram diretamente em diálogo com ERRÔR. Aliás, se há coisa que os Linda Martini sempre fizeram na sua discografia é, de certa forma, criarem uma espécie de “antagonismo” entre discos consecutivos – a tal aprendizagem e não repetição. Por exemplo, depois de Turbo Lento (2013), disco pautado por canções preenchidas por camadas e camadas de guitarras, fizeram em resposta Sirumba, o disco mais despido e direto da sua carreira até ver. Em seguida, com Linda Martini (2018), fizeram um disco mais distorcido, com canções mais barulhentas, aceleradas e extremamente dinâmicas. ERRÔR, em resposta, é menos dinâmico. A sua angularidade serve para conferir peso às canções (os Protomartyr eram a clara referência sonora dos Linda Martini em ERRÔR) e não para lhes acrescentar dinâmica. É isto que faz com que as canções de ERRÔR não sejam tão cativantes quanto as outras da banda.
Os resquícios de ERRÔR escutam-se particularmente nas canções mais apunkalhadas de Passa-Montanhas como “Corações Rápidos” (a versão ao vivo da malha é superior à de estúdio, não vou mentir) ou “Uma Banda”, canção que serve de montra para uma meta-reflexão sobre o que é isto de ser uma instituição do rock português com mais de 20 anos de carreira como são os Linda. Foi a primeira canção que André, Cláudia e Hélio fizeram com Filho da Mãe e é uma malha que tem os seus momentos (refrão orelhudo, riffs bem sacados, coros bem marcados na outro, referência a Chico Buarque na poesia), mas que na sua totalidade, deixa algo na mesa por explorar. Felizmente, esta é a segunda canção do disco. Daí para a frente, os Linda Martini exploram muito mais, às vezes até demais, como a estranhamente estrambólica “Faz-se de Luz”, o mais próximo que os Linda Martini já estiveram de soar a If Lucy Fell. Malha de pura devoção aos Fugazi, não haja a mínima dúvida. Mas tal como em “Uma Banda”, “Faz-se de Luz” não preenche totalmente a minha fome por uma canção mais punk dos Linda Martini. Não é uma “Belarmino Vs.” ou uma “Gravidade”.
Todavia, é na combinação entre harmonia e peso que Passa-Montanhas supera o seu predecessor em qualidade. Em “Meu deus”, canção anti-capital, os Linda Martini conjugam o peso de ERRÔR com um trabalho textural que ecoa alguns dos momentos mais solenes de Olhos de Mongol. Em “Eu Às Vezes Perco-me”, brincam mais com a voz do que em praticamente toda a sua discografia – com efeitos bem conseguidos. “Cão Tinhoso”, hino antifascista pronto a ser berrado a altos pulmões nos concertos eletrizantes da banda, é uma canção cuja estrutura lembra alguns momentos de Turbo Lento, mas cuja sonoridade está entre Sirumba e Linda Martini. Em “A Cantiga É”, a melhor canção “no prego” do álbum, os Linda Martini relembram que, hoje em dia, para resistir é necessário repensar como o fazer. Se protestamos contra o genocídio ou contra a crise imobiliária, se as pessoas vão à rua, se há apoio popular, porque nada muda? Questões que importam ser lançadas para o ar e às quais os Linda Martini vão piscando o olho com o lado mais político deste novo álbum.
A fechar Passa-Montanhas, “A Mão Como A Maré” é a malha mais longa que os Linda Martini já fizeram desde “Lição de vôo nº1” (e essa tem uma catrefada de minutos de ruído) do EP homónimo de estreia (2005). É um crescendo constante que se consagra numa das canções mais progressivas (bem à pós-rock) da discografia dos Linda Martini. É uma canção extraordinária, uma espécie de melancolia quase eterna que nos leva de volta ao sentimento que iniciou o longa-duração.
Mesmo que a vida nos ofereça trocas e baldrocas, mesmo que os assombros continuem a perpetuar-se eternamente, mesmo que as perguntas continuem a brotar no nosso cérebro para se vale a pena continuar (“Para quê nadar se tudo afoga? / Para quê esperar se ninguém vem?”), a verdade é simples: vale a pena continuar a lutar. Se o passado assim nos demonstrou, e se o presente nos continua a demonstrar, é que desistir não é uma opção perante as ameaças, perante os infortúnios da vida. Em Passa-Montanhas, os Linda Martini provam que ainda têm energia para continuarem a lutar. Ao fazê-lo, indicam: esta banda ainda tem futuro, esta banda ainda não é para matar.
Os Linda Martini vão andar pelo país a apresentar Passa-Montanhas. As datas podem ser consultadas aqui.