A ideia da viagem a São Paulo surgiu quando Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo estiveram em Lisboa. Tinha-os entrevistado para a Playback e, no fim, combinámos ir beber uns copos depois do concerto. Por coincidência, atravessámos a Rua Cor de Rosa e acabámos na Pérola de São Paulo, um bar na (adivinhe-se) Rua de São Paulo. Entre trocas de impressões sobre as diferenças entre o português de cá e o de lá, a Sophia sugeriu que a fosse visitar a São Paulo. Disse que sim, como quem aceita um convite para atravessar a rua — mas, na verdade, era um oceano inteiro.
A 24 de janeiro, lá estava eu, ainda em piloto automático, a embarcar numa viagem de 11 horas. Na mochila: dois livros, duas temporadas de Breaking Bad descarregadas e um livro de sudoku. Aterrei no Aeroporto de Guarulhos, a 30 quilómetros do centro de São Paulo, logo após a maior tempestade registada desde os anos 80. Apesar disso, quando a Sophia me levou até casa, a estrada parecia indiferente ao caos. Eu, por outro lado, não era tão imune ao que via. No carro, a inquietação tomava conta de mim. Ora espreitava pela janela, a tentar perceber a lógica do trânsito, ora inclinava a cabeça para ver os prédios a espalharem-se no céu. Dos poucos sítios que já visitei, foi em São Paulo onde me senti mais pequena e transparente.
Curiosidade número um que tomei conhecimento durante a minha viagem: Sabiam que no Brasil há mais bois do que habitantes?

A cidade que nunca dorme
Em São Paulo, basta observar o ritmo frenético da cidade para sentirmos o cansaço. Os condutores disputam cada segundo no trânsito, operários trabalham pela noite dentro e há sempre um grupo de amigos a celebrar num bar de esquina, independentemente do dia da semana. Há sempre barulho, demasiado barulho, a que, inusitadamente, nos acostumamos.
A organização da cidade reflete essa aceleração constante. Numa mesma rua, cruzam-se casas coloniais portuguesas, arranha-céus modernos ou brutalistas, e favelas atreladas a essa aceleração onde observamos a discrepante desigualdade social. Na aparente desordem, os paulistas criaram um sistema peculiar para organizar o comércio. É comum que ruas inteiras sejam dedicadas a um único setor, como a famosa Rua das Noivas, onde se concentram lojas especializadas em tudo o que esteja relacionado com casamentos.
A minha estadia coincidiu com o aniversário da cidade. Este ano, a 25 de janeiro, São Paulo celebrou 471 anos, e a data serviu de pretexto para visitarmos a zona da Sé, a área onde surgiram os primeiros vestígios da cidade, e mergulhar um pouco na sua história. Ao atravessarmos o Viaduto do Chá, os edifícios modernos dão lugar a uma paisagem que parece suspensa no tempo, marcada pela arquitetura colonial. A Catedral da Sé, o Pátio do Colégio e o Mosteiro de São Bento são testemunhos desse passado criado pelos jesuítas. Foi ali que a Sophia, fascinada pela história colonial e indígena, me explicou que aquela zona albergava um dos mais antigos quilombos – refúgios criados e organizados por negros escravizados que conseguiram fugir. Contudo, com o tempo, esses locais foram deslocados ou destruídos pelas autoridades. (Hoje, este tipo de refúgio ainda existe, mas somente nas extremidades da cidade e arredores). Próximo dali, encontrava-se a estátua de Zumbi dos Palmares, líder do maior e mais duradouro quilombo da história do Brasil. A estátua só foi erguida em 2016. São pormenores que dão outro sentido histórico à cidade, mas que não têm o seu devido destaque. Ainda assim, entre os arranha-céus de São Paulo, as cicatrizes do passado continuam visíveis, relembrando a história que moldou a cidade e o seu povo. Para os interessados, recomendo o Museu da Língua Portuguesa e a Caminhada São Paulo Negra.
Curiosidade número dois: Cada carro tem definido quais os dias e as horas que pode circular no centro da cidade.

Às segundas-feiras toca-se choro
O que me fez apaixonar por São Paulo foi a forma como a cidade é repleta de cultura. Era difícil ouvir uma canção internacional nos bares, cafés ou restaurantes, o que me incentivava automaticamente a conhecer novos artistas. Dou um exemplo: não adoravam escutar a canção “Azul” na versão de Gal Costa num supermercado? Aconteceu-me na minha ida às compras de paçoca.
À segunda-feira, quando muitos museus e casas culturais costumam fechar, São Paulo mantém a “tradição” de choro e do forró. Depois de uma daquelas típicas chuva de verão, fomos até ao Requinte Vinho Bar, um espaço onde grandes músicos do género já tocaram. Além da música, o espaço é ainda conhecido pelos ótimos pasteis de bacalhau, receita do fundador português, António. Naquele dia, 27 de janeiro, o ambiente era diferente. Fazia um ano que morrera a violinista Wanessa Dourado, uma amiga e artista assídua da casa. O Requinte estava especialmente cheio de amigos, admiradores, familiares e curiosos, como eu. Seis músicos, todos amigos de Wanessa, tocavam temas seus e clássicos do choro. Entre cada canção, o público em coro gritava: “Viva Wanessa, viva!”. Entretanto, os músicos iam oferecendo o seu lugar a outros que queriam prestar também a sua homenagem. Foi uma noite de reencontro, partilha, luto, e essencialmente de música com imenso sentimento. Foi ali que percebi que me apaixonei pelo vibrante e complexo mundo do choro. Ao mesmo tempo, o choro é melancolia e festa.
Na mesma avenida Prof. Alfonso Bovero fomos até ao Congolinária, restaurante de comida do Congo e espaço cultural, para assistir ao Forró dos Ratos, um DJ set em vinil dedicado unicamente ao (adivinhe-se) forró – o género favorito da Sophia. Muitos dos presentes acompanharam a música com dança. Os pares moviam-se com fluidez e sensualidade, como se já fosse instinto. Ao fim de algumas músicas, percebi que o forró é tão suave como a cerveja brasileira, que com a pouca cevada, escorrega pelo esófago como água.
Curiosidade número três: Sabiam que a água de rede pública no Brasil tem flúor?

A criatividade com pagamentos em atraso
São Paulo é a cidade onde nasceu muito do rock brasileiro, e hoje o género mistura-se e transforma-se. No Centro Cultural de São Paulo, assisti à sessão piloto do Cinexperimenta, projeto que propõe a intersecção do cinema com outras linguagens artísticas. Sophia e Uma Enorme Perda de Tempo, juntamente com o produtor, compositor e multiinstrumentista Vitor Araújo tiveram o prazer de inaugurar e musicar o filme Delírios de um Anormal do cineasta paulista José Mojica Marins, onde o próprio interpreta a personagem popular Zé do Caixão. O filme, uma alucinação arrepiante feita a partir de fragmentos das suas próprias obras, tem um orçamento reduzido (um B-movie brasileiro!), o que torna ainda mais evidente a criatividade do cineasta. Essas mesmas características espelharam-se nas composições originais da banda onde, através do improviso, exploraram novas sonoridades em palco.
Mas a diversidade de programação cultural não fica por aqui. Foi na Casa Francisca onde a Sophia me apresentou Kiko Dinucci e o seu lado mais experimental. O cantor, compositor e instrumentista brasileiro apresentava naquela noite a versão “lisérgica e derretida” do álbum Rastilho (2020). A performance beneficiou da disposição do espaço: Dinucci, na voz e na guitarra, e Pedro Silva, nos pedais e modeladores, encontravam-se no centro da sala num pequeno palco circular, em frente a um grande pano de veludo vermelho e iluminados com luzes quentes e suaves. Apesar do álbum ter já na sua base a exploração alternativa dos géneros tradicionais da música brasileira, os artistas quiseram ir além fronteiras do som e dos ritmos. Aquilo que começava por ser um sertanejo transformou-se numa mantra de techno, como se estivéssemos dentro do universo cinematográfico de David Lynch – algo entre Blue Velvet e Twin Peaks.
Durante a minha estadia, apesar dos bons projetos culturais, a Sophia fez questão de me mostrar que São Paulo é a exceção no Brasil. Corrijo: o centro de São Paulo é a exceção do país, e que também tem as suas desvantagens. Como mencionou na nossa entrevista, o Brasil “é um lugar com o capital muito concentrado, em que o dinheiro está em pouquíssimas mãos, e onde, estranhamente, o Estado não é um dos seus detentores. No sentido da cultura, essas pessoas que detêm o capital optam por ter uma abstração do que é a arte”. O problema é conhecido: o corte de vias de financiamento, o fecho das casas culturais. É na mesma cidade que se faz casa de festivais de renome a nível internacional, que inflacionam o preço dos bilhetes, e em que marcas abrem espaços culturais – caso do banco Itaú com o seu museu na Avenida Paulista ou a cosmética Natura com a Casa Natura Musical.
Ainda assim, existe ainda um pilar que tenta resistir a este cenário: o SESC (Serviço Social do Comércio), uma instituição que oferece serviços à população nas áreas de saúde, educação, turismo, desporto e cultura, atuando em todo o país. A maioria são grandes e modernos edifícios que dispõem de restaurante, salas de espetáculo, cinema e exposição, piscinas, bibliotecas, entre outras. Em São Paulo, só consegui visitar três: 24 de maio, Avenida Paulista e Pompeia, o meu favorito. Projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi, o edifício reflete a sua filosofia de “cidade dentro da cidade” – um espaço aberto onde as pessoas podem circular livremente, experimentar cultura, desporto e lazer sem barreiras sociais ou físicas. Foi também aí onde assisti ao concerto de Dora Morelenbaum, dos Bala Desejo, aquele que mais ansiava assistir já que não tive a oportunidade de a ver no Musicbox, em Lisboa. O concerto aconteceu na sala de teatro do espaço, uma sala brutalista e industrial, mas onde a acústica elevava a qualidade da música. Dora e a sua banda, com o repertório do mais recente álbum Pique (2024), temas do seu primeiro EP Vento de Beirada (2021) e o meu single favorito “Dó a Dó”, espalharam o seu perfume cheio de melancolia, sensualidade e eletricidade. Senti uma enorme pena que o concerto tenha sido sentado.
Curiosidade número quatro: Sabiam que se suspeita que a Amazónia tenha sido totalmente plantada pela comunidade indígena?

Efeito jet lag
Foram oito dias em São Paulo e ainda mais três no Rio de Janeiro (mas as histórias do Rio ficam para outra altura porque o que acontece no Rio fica no Rio). À partida, achei que seriam dias a mais. Porém, no final de contas, voltei para Portugal com ainda mais lugares por visitar do que quando lá cheguei. Afinal, São Paulo tem o tamanho de Portugal e dos seus arquipélagos juntos. Entretanto, as saudades já pesam, especialmente pela amizade que desenvolvi com a Sophia.
Ainda que o jornalismo tenha os seus dissabores, aquilo que realmente faz a engrenagem girar são estas oportunidades raras de conhecer pessoas e ir a lugares que, de outra forma, seriam inalcançáveis. No meu caso, foi conhecer a cidade através dos olhos e vivências da Sophia e poder ter a sensação que fiz mais uma amiga para a vida.
Não querendo tornar o artigo demasiado pessoal, partilho apenas que tive a sorte de conhecer uma das pessoas mais humildes, carinhosas e criativas que já encontrei. A ela, só tenho a agradecer pelas partilhas, pelas conversas e pelas aulas de geografia e história. Conheci igualmente pessoas incríveis a quem ofereceria, sem hesitar, casa em Portugal para poder retribuir a hospitalidade. São Paulo fez-me apaixonar pelos paulistas e questionar-me, tendo uma língua tão semelhante, porque é que não poderíamos ser mais próximos?
Gostaria que todos tivessem a oportunidade de visitar o Brasil e todos os países da América Latina, pois tenho a certeza de que nos ajudaria a compreender melhor o mundo que nos rodeia e aqueles que o habitam. Novas filosofias, novos modos de pensar, de resistir. Há muitas desigualdades e muitas injustiças que facilmente nos sensibilizam e nos deixam a refletir. Mas, mais do que o ótimo café que trouxe, os quatro discos ou a paçoca, são as experiências e as imagens desta viagem que guardo com mais estima. Saio do aeroporto de Humberto Delgado, em Lisboa, e tudo é estranhamente mais calmo, mais silencioso. Senti-me incomodada por ser tão pequena e insignificante enquanto lá estive. Mas no final do dia, é disso que tenho mais saudade.

