Travo: “Faz parte da nossa identidade descolar das coisas antigas”

Oriundos de Braga, Gonçalo Carneiro (guitarra e voz), Gonçalo Ferreira (guitarra), David Ferreira (baixo) e Nuno Gonçalves (bateria) formam os Travo, banda que já deixou uma marca significativa no panorama musical nacional e que agora começa a estender a sua influência além-fronteiras. Desde os primeiros passos com o EP gravado n’O SILO (2017) até ao lançamento do seu mais recente longa-duração, Astromorph God, o grupo tem mostrado uma evolução notável, tanto no som como na maturidade artística.

Lançado em 2023, Astromorph God mergulha numa narrativa psicadélica repleta de monstros e viagens sonoras intensas, consolidando-se como o ponto mais alto da carreira da exportação musical bracarense até agora. Este disco valeu-lhes uma digressão europeia, tornando-se cada vez mais raro vê-los nos palcos nacionais, já que o foco está em levar o seu som a novos públicos fora de portas.

Apesar de ser difícil categorizar o som da banda em géneros tradicionais, a reação do público é inconfundível: os Travo fazem-nos abanar a cabeça, saltar e vibrar com cada riff. 

Em janeiro, a Playback encontrou-se com a banda em Braga, poucas horas antes de tocarem n’A Noite dos Reis da Bazuuca, para conversar sobre o percurso que delinearam neste quase uma década de banda, sobre tocarem no festival Eurosonic, e, claro, sobre a oportunidade de gravar uma sessão live para a icónica rádio KEXP.

Capa Astromorph God
Capa Astromorph God
Os Travo nasceram em 2015, mas a formação atual da banda, que inclui o Gonçalo Carneiro, só se consolidou em 2017.  Podemos dizer que a banda conta já com 10 anos?

[David Ferreira] Ui, isso é muito pesado. Nem quero pensar que somos tão velhos [risos].

[Nuno Gonçalves] A verdade é que sentimos que os Travo só começaram mesmo a ser os Travo quando o Gonçalo [Carneiro] entrou na banda. Dizer que temos 10 anos não faz muito sentido. Antes dele, Travo era uma coisa completamente diferente. Éramos uma espécie de banda de música lo-fi. Foi com esta formação que achamos o nosso som

Sendo assim, há oito anos achavam que chegariam a ter esta longevidade?

[Nuno] Não, de todo. No início desta formação, gravamos um EP ao vivo [n’O SILO], e aquilo em que pensávamos mais era gravar um álbum e dar concertos. O objetivo era materializar algo. Com o passar do tempo, naturalmente pensou-se numa carreira, mas só à medida que o tempo passou.

[David] Até diria que formamos a banda porque queríamos muito atuar no Rodellus.

Chegaram a tocar lá?

[Nuno] Em 2017, através de um concurso de bandas. Voltamos em 2019, mas já por convite.

[Gonçalo Ferreira] Esse concerto de 2017 foi uma das nossas primeiras atuações e foi muito especial. O concerto estava apertado — demos um sprint para termos material suficiente, mas foi ali que aconteceu o nosso primeiro contacto com o Jorge Dias, da gig.ROCKS!.

[Jorge Dias] Lembro-me bem. A cena fixe foi que eles apresentaram algo mais pesado do que estávamos à espera. Impressionou-nos muito. Foi amor à primeira vista! Depois do concerto, ficamos em contacto e no ano seguinte consegui caçá-los. Agora, cá estamos.

Houve algum momento em que começaram a sentir que se calhar já estavam a aproximar-se de ter uma carreira?

[Gonçalo Ferreira] Só a partir do Sinking Creation (2022).

[Nuno] Na verdade, nunca pensamos no que se segue. Nunca pensamos três álbuns à frente. Estamos sempre a pensar no próximo e depois é como for. Mas diria que foi a partir do Sinking Creation porque começámos a perspetivar atuar fora.

[David] A pandemia definitivamente atrasou esse momento. Tivemos mesmo muita sorte de ter o trabalho da casa do gnration porque senão provavelmente teríamos acabado. Estávamos muito desmotivados e sem dinheiro. Com o trabalho da casa, tivemos a oportunidade de gravar o Sinking Creation e a partir daí as nossas perspectivas mudaram completamente.

[Nuno] Foi também o primeiro álbum que gravamos com a gig.ROCKS!. Depois, tivemos os concertos de apresentação do álbum que correram bué bem. Nesse ano [2022], tocamos no Sonic Blast, que já era um sonho nosso desde há bué tempo.

Ao longo da vossa discografia percebe-se uma clara evolução, mas também uma forte coerência na identidade da banda. Acham que permaneceram fieis à ideia original da banda ou que essa visão foi se transformando ao longo do tempo?

[Nuno] Diria que sim. Fomos fiéis. Fazer música psicadélica é a nossa cena. Apesar disso, fomos evoluindo naturalmente com o tempo, aprendendo com erros e experiências.

[David] Mas também nunca pensamos muito à frente. Fazemos uma coisa de cada vez e seguimos.

“Os homens agora só querem juntar-se em garagens e fazer instrumentais de meia hora de shredding nas guitarras”. Da última vez que vos vi ao vivo, ouvi alguém dizer isto. Diriam que isto é uma boa forma de descrever os Travo?

[Gonçalo Ferreira] Mais ou menos, porque tentamos sempre encurtar — com meia hora de shredding, já conseguimos fazer mais do que uma canção[risos].

Consideram que Astromorph God foi o álbum onde melhor consolidaram o vosso som?

[Nuno] Até agora, sim. Mas esperamos que o próximo o consolide ainda mais. Isso vem naturalmente com a evolução.

Dado que o vosso som tem evoluído constantemente, como olham hoje para as músicas de álbuns anteriores, como “Ano Luz”? Ainda sentem carinho por essas faixas ou encaram-nas como capítulos fechados?

[Nuno] Sentimos carinho, sim.

[David] Alguns membros da banda sentem carinho. No entanto, praticamente não tocamos material antigo porque certos e determinados membros da banda passaram a detestar as músicas antigas com muita intensidade [risos].

Fotografia: Francisco Gaspar
Fotografia: Francisco Gaspar
Para tentarem chegar a um meio termo entre vocês já discutiram a possibilidade de retrabalhá-las?

[Nuno] Eventualmente, quem sabe. Mas agora estamos focados em coisas novas. Faz parte da nossa identidade descolar das coisas antigas.

[Gonçalo Carneiro] O espetáculo também não faria sentido sem essas músicas. Retrabalhá-las poderia desvirtuar o que fazemos agora.

Como poderiam descrever o vosso processo criativo e qual o papel de cada um na banda? Como foi evoluindo ao longo do tempo?

[Gonçalo Ferreira] O processo foi sempre mais ou menos o mesmo: trazemos ideias de casa e jammamos em cima delas.

[Nuno] O que mudou foi que agora javardamos menos. Mas a essência é a mesma.

Além do psicadelismo que define o vosso som, algo que permaneceu constante foi o impressionante rácio de bigodes da banda –  manteve-se firmemente nos 100%. Quem tem o melhor bigode da banda?

[Gonçalo Ferreira] Primeiro o Nuno, depois eu, depois o Carneiro e, por último, o David.

Responderam muito mais rápido do que esperava! [Risos]

[Gonçalo Ferreira] Já estava definido este ranking.

[Nuno] Ter bigode é um requisito para estar na banda.

Em palco, transmitem uma energia contagiante – realço Gonçalo Carneiro a cantar os wah wah com muita intensidade. Seja onde for que vão tocar, vibram desta maneira?

[Gonçalo Ferreira] Não. Nos ensaios não somos assim tão expressivos. Antes de entrarmos em palco, fazemos um pequeno ritualzinho para ganhar pica como se fossemos para uma final de desporto. 

[Nuno] A intensidade vem da nossa música e quando estamos em cima do palco ganha muita mais.

Houve algum concerto em concreto em que sentiram uma energia mais intensa?

[David] O concerto do Transmusicales. Foi o nosso maior palco e com a maior audiência até agora.

[Gonçalo Ferreira] E foi incrível. O pessoal curtiu muito.

[Nuno] Esse concerto foi gravado e está disponível na plataforma de streaming da France TV. Ficou com uma qualidade mesmo muito fixe.

Mesmo nos comentários de vídeos vossos, vejo muitas comparações ao vosso som com bandas como King Gizzard & The Lizard ou Thee Oh Sees. O que pensam sobre essas comparações?

[Nuno] Achamos fixe. São bandas que gostamos muito e ser associado a elas é lisonjeante.

Ao longo do percurso dos Travo, que mudanças observaram na cena stoner no norte do país? Acham que houve uma evolução significativa, seja em termos de público, bandas, ou mesmo locais para concertos?

[David] Não há muitas bandas deste género. Até é difícil falar de uma onda porque são tão poucas.

[Nuno] Sentimo-nos integrados até porque são pessoas que nos são próximas. Ensaiamos nos mesmos sítios, convivemos e acabamos por partilhar experiências.

[Gonçalo Ferreira] O público tem vindo a crescer, sem dúvida. Diria que o Sonic Blast tem sido o ponto de encontro principal das bandas deste género, como MAQUINA., Solar Corona ou Desert Smoke.

[Nuno] O crescimento do Sonic Blast acaba por ser um medidor de crescimento para este movimento. Mas também o Stop, no Porto, porque permite a convivência com outras bandas. Mesmo que não influencie diretamente o som, dá-nos pica para ensaiar. Quando te sentes imerso numa determinada cena musical, naturalmente ganhas inspiração.

Olhando para trás, os Travo têm marcos já na sua carreira. Tocaram em festivais como o Eurosonic, Transmusicales, Sonic Blast, fizeram uma digressão europeia em 2024, foram incluídos numa das compilações de Novos Talentos FNAC. Quais foram os principais marcos que vos impactaram mais, ou momentos específicos que recordam com carinho?

[Gonçalo Ferreira] Por ordem cronológica, diria que a atuação no Sonic Blast foi um marco muito importante. Depois, a tour europeia foi outro momento incrível. Agora, esta fase em que atuamos no Eurosonic e no Transmusicales.

[David] A primeira vez no Sonic Blast foi especial. Sempre foi um sonho tocar lá, éramos mega fãs do festival, e consegui-lo foi um momento que nos fez sentir super excitados.

[Gonçalo Ferreira] O que me ficará mais na memória foi termos tocado no Sonic Blast num horário mesmo a seguir a uma das nossas bandas favoritas, os SLIFT.

[Nuno] Para mim, foi a tour. Ajudou-nos a crescer enquanto banda.Tocar muitas horas, às vezes até mais do que devíamos, acaba por nos ajudar a melhorar muito musicalmente.

[Gonçalo Carneiro] E, claro, o convite para gravar na KEXP. Isso foi surreal.

Como tem decorrido este processo de internacionalização dos Travo? Que dificuldades têm encontrado ao tentarem levar a vossa música além-fronteiras?

[David] Está a correr muito bem. A tour europeia abriu-nos muitas portas. Este ano, mais de 70% dos nossos concertos serão fora de Portugal. Acho que só temos dois cá.

[Nuno] Conhecer pessoas certas também ajudou muito. Há malta que nos chama para ir atuar a sítios e o facto de já termos um histórico facilita bastante. A parceria entre a gig.ROCKS! e a Spinda Records foi essencial para montar a primeira tour europeia.

[Gonçalo Carneiro] Sempre que vamos lá fora, abrem-se mais portas. Agentes e editoras vão-nos conhecendo. O facto de sermos novidade ajuda.

[David] A maior dificuldade, no entanto, é a localização geográfica de Portugal. É sempre tudo muito longe, nunca nada é perto. Como estamos no canto da Europa, obriga-nos a viajar muito mais.

[Gonçalo Ferreira] Também temos os nossos trabalhos. Não vivemos da banda. Gerir os horários e tirar férias para poder tocar fora é sempre um desafio. É o maior travo [risos].

Falaram do live que gravaram para a KEXP – desde já os parabéns. Como surgiu a oportunidade de gravar uma sessão para a KEXP? O que sentiram ao receber o convite?

[David] As sessões da KEXP gravadas na Europa são feitas através do festival Transmusicales e do Eurosonic. Quando fomos confirmados nesses festivais, o Jorge e o João da gig.ROCKS! mencionaram que existia a possibilidade de gravarmos para a KEXP, mas achámos que não ia acontecer.

[Nuno] Tenho ideia de que foi também por recomendação da organização do festival.

[David] Ya. Tocamos também num showcase no País de Gales que parecia que ia ser uma grande seca. Tocamos para 30 pessoas num hotel, cheio de agentes e malta de editoras a tirar notinhas. O organizador do Transmusicales viu-nos e quis-nos fechar para o festival.

[Gonçalo Ferreira] Foi mesmo uma grande surpresa. Ainda custa acreditar. O concerto em Gales parecia que estava a ser uma grande merda.

[David] E foi uma grande merda. Mas ainda abriu umas portinhas.

[Gonçalo Carneiro] Abriu bastantes portinhas. Depois, recebemos um email a propósito da KEXP. Quando o vimos, ainda estávamos céticos. Ver para crer. Sentimo-nos muito privilegiados por esta oportunidade.

[David] A KEXP foi uma surpresa agradável e esperamos que, quando sair, tenha ficado fixe.

Como prepararam o set para a KEXP?

[Gonçalo Ferreira] Foi só pegar no set para o Transmusicales e encurtá-lo.

[Nuno] Estamos ainda a rodar o Astromorph God e vão ser músicas desse disco que poderão ouvir no live da KEXP.

[Gonçalo Ferreira] Até é estranho dizê-lo assim [risos].

De alguma forma, a exposição que a KEXP proporciona trouxe alguma expectativa ou pressão para vocês?

[Nuno] Não diria pressão. Está tudo a acontecer de forma muito gradual, o que ajuda. Mas temos noção da importância e queremos dar o nosso melhor. Até de certa forma fez-nos sentir otimistas.

[David] Estamos a ter muita sorte. Agora é continuar a fazer o que temos vindo a fazer e a trabalhar.

[Nuno] Como está a ser um processo muito evolutivo sentimo-nos tranquilos com a maneira como as coisas vão acontecendo de uma maneira sustentável e natural.

E agora têm planos para o futuro? Lançaram dois álbuns em dois anos e estão muito ativos.

[Gonçalo Ferreira] Agora há planos para a composição de um novo álbum.

[Gonçalo Carneiro] Planos há sempre, concretizá-los é que é outra coisa.

[Nuno] Vamos aproveitar uma pausa nos concertos para nos focarmos mais na composição. Dar concertos dá-nos muita pica para criar novas músicas, até porque acabamos por nos fartar de tocar as mesmas e queremos sempre trazer algo novo.

[Gonçalo Ferreira] Já estamos um bocado em piloto automático a tocar o Astromorph God ao vivo. Começámos a tocá-lo quase um ano antes de ele ser lançado e já nem sabe ao mesmo ensaiar as músicas. É só mesmo para treinar memória muscular. Mas ainda é bué divertido de tocar ao vivo.

Daqui a oito anos, o que imaginam para o futuro da banda?

[David] Acho que ainda conseguimos evoluir muito. Enquanto sentirmos isso, fará sentido continuar.

[Gonçalo Ferreira] O objetivo será sempre tocar melhor e acrescentar algo à cena da música.

[Gonçalo Carneiro] Não sei o que será da banda, mas eu gostava de continuar a tocar com eles. Isso é o mais importante.

Filho do rock, do doom e de todos os géneros musicais que nos façam abanar as ancas e a cabeça, reside em Braga onde estuda engenharia. Poderão encontrá-lo em qualquer cave onde haja barulho e em qualquer local onde haja cerveja a preços abaixo da média.

Stoner rock bracarense pronto a ser levado além-fronteiras.

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