O mundo arde mas o ano acaba, e o que interessa é prendinhas e olhares retrospectivos sobre os meses que se viveram – ai que bom é o ocidente. Para mim, olhar para 2024 não me traz grande prazer. Um outro Zé talvez desenvolvesse mais esse sentimento aqui, nesta revista de música que tem demasiada paciência para si e onde já se mostrou muitas vezes vulnerável. Mas este – o que passou este ano de calendário gregoriano -, não está para aí virado.
Existir dói, e num ano sanguinário como 2024, como é que é suposto isso aliviar algo? Genocído continua a ser tratado como um mero “conflito”, as discrepâncias sociais aumentam a um ritmo aterrorizante, o diálogo morre diariamente, a malta educa-se em algoritmos e a trivialização e perpetuação da violência é diária. Nesta sociedade póstuma, cada vez mais consciente de que isto não tende a endireitar-se, há que voltar a reforçar, sem eufemismo, o fatalismo com que digo isto: o mundo está a arder. Mas o ano acabou. Portanto, lá se partilharam as coletâneas de dados pessoais da música que consumimos, fornecidas por uma empresa tão fixe que tanto faz pelos artistas.
Enfim. Se calhar os meus dedos teclam raivosos de saturação, sobrecarga académica e um ano que não lhe sorriu muito a nível pessoal. O que aqui quero deixar não é de todo impingir culpa, vangloriar hipocrisia, ou perpetuar tristeza e sofrimento – para isso basta ter-se em conta todo o contexto supracitado. Pelo contrário. Quero, consciente da certa incongruência do que digo, virar um pouco Narciso e fazer deste processador de texto uma poça de água para refletir sobre a minha relação com a arte neste ano que ainda recentemente terminou, e como esta exibe uma apatia tenebrosa.
Em boa verdade, talvez tenha sido um mecanismo de defesa. Devemos ser críticos sobre o habitat onde andamos, ter consciência do que se passa por aí, perceber o contexto histórico que tornou o que conhecemos naquilo que é e daí tentar perceber como haveremos de tentar ser felizes (ou não sofrer) apesar de tudo isso – já que aqui estamos, mais vale pelo menos tentar. Às vezes, em auto-sabotagem ou refúgio, fugimos para um estado de alienação, que poderá alastrar até mesmo para coisas que supostamente se gosta. E bem alienado andei eu em 2024. Neste misto entre crise dos vinte, infortúnios, um medo do futuro e os cataclismos dos loucos anos 20, não houve inclinação para explorar paixões que (supostamente) tanto me movem: o cinema e a música.
Este bichinho de navegar nos mares melómanos e cinéfilos foi algo que me ofereceu um senso de propósito – algo de que também já falei aqui. Era um hobby viciante, com folhas de Excel a serem extensamente preenchidas por tudo o que era álbum da mais variada planície musical. Escrutinava tudo o que havia de novo e tinha quase uma ambição obsessiva de ouvir o maior número de álbuns que saíam no ano, culminando em listas dos meus favoritos para imitar as publicações que acompanhava (normalmente 50, porque era todo fixe e jovem e ouvia muita coisa). Foi por estas lides que conheci pessoas que me levaram a conhecer mais música e anos mais tarde estava a escrever numa publicação sobre lançamentos na música portuguesa – obrigado, Miguel -, o que realmente me fez assumir que era mesmo pelos mares culturais que queria nadar. Neste ano que passou, nem 20 álbuns que saíram em 2024 devo ter ouvido.
Claro que já há algum tempo que deixei de valorizar esta métrica, e hoje não sou grande fã da forma como consumia e refletia sobre o que ouvia quando comecei a converter-me à melomania. Normal. É por isso que se cresce. A vida vai-se atarefando e outras coisas vão tomando lugar. Mas 2024 não foi uma mera discrepância na quantidade de arte que consumi. Foi mesmo um sentimento de apatia e quase incapacidade de fazer coisas que outrora eram rotineiras e essenciais para mim. Aliás, ter vontade de o fazer foi algo que foi desvanecendo. Por um lado, tinha o senso de necessidade de “eia, tenho de ouvir isto” ou “esta artista que tanto gosto lançou, tenho de ouvir”, mas foram raros os casos de ter tomado qualquer ação. Estar a par dos novos lançamentos musicais, ler publicações culturais, ir ao cinema e cineclubes (fiquei mais de seis meses sem pisar qualquer um destes sítios), até ver filmes, algo basilar para mim, foi algo que fui deixando de conseguir fazer. Até mesmo aqui, na Playback, escrevi três artigos em 12 meses. As páginas ficavam em branco e as ideias voavam como uma pena a dançar ao vento. Não saía daqui nada. Não havia sequer interesse em escrutinar o engenho. E as dúvidas autoinfligidas e crises identitárias foram tomando conta de mim.
Dúvidas como: A que se deve tudo isto? A muita coisa que nem devo conseguir discriminar ou enumerar, mas que me fez questionar (e muito) sobre se realmente gostava destas coisas que tanto me definiam – neste obséquio apenas reflito sobre música, até para poupar o coitado do leitor. Indaguei: Será que ainda gosto de música? Se esta foi uma pergunta que assombrou grande parte do meu ano, nos últimos meses, tumultuosos que se fartaram, onde a vida não mostrava os dentes, pensar no futuro era farpado e isso levou a refúgios boémios e uma busca desenfreada por inconsciência, eis que obtive a minha resposta. Posso realmente ter-me desapegado da primeira arte e nem ter feito grande juízo disso, mas…porra! Não me lembro de ter vivido tanto a música.
Ouvir música é um privilégio. Explorá-la, ainda mais o é. Poder escolher entre som e silêncio é uma regalia a que nem todos temos direito. O silêncio é uma fortuna e ocupá-lo com música é algo que devemos valorizar poder fazer. Não quero de todo soar moralista quando digo isto, mas sim realçar o quão belo é isto de ouvir música em todo o seu esplendor. Evidente que com a materialização desta, onde somos esbofeteados por todo o lado, desde as televisões que são lareiras, aos telemóveis apêndices, o silêncio é vítima e por vezes já nem nos apercebemos do quão precioso é ouvir uma canção. A significância que lhe damos distingue-se pela forma e juízo – e respetiva análise e fundamento – com que a consumimos. Analisar coisas é fascinante. Esmifrar um objeto cultural com via de obter um construto que realce a virtude que lá encontramos (ou a falta dela) é um processo que nos enriquece. Contudo, há que ter a consciência de que se anda numa corda bamba entre o oco e o pretensioso. E está tudo bem com isso. Fomos nós (humanos) que decidimos conceptualizar tudo.
Ouvir música é uma experiência. E a minha mãe uma vez disse-me: “Tudo é uma experiência”. Gosto muito de pensar que assim o é. Significa que a todo o momento temos algo para aprender, pois nós somos experiências. Refletir sobre elas é o que nos constroi. Então e que raio de experiências musicais tive eu que me fizeram assumir que nunca amei tanto o som? A resposta é: simples. E é isso.
Há um preciosismo, que ainda hoje mantenho, que consiste em só conseguir ouvir um álbum pela primeira vez de uma maneira específica: no conforto dos meus auscultadores de estúdio no silêncio de uma divisão. Se nunca ouvi um álbum na íntegra, não o vou fazer com a ajuda de uns fones bluetooth a andar na rua, através de colunas ou com alguém a mostrar-me. Para mim, é como ver um filme no telemóvel. Escusado será repetir que isto é um perfeccionismo pessoal, sem qualquer julgamento por quem não o faça. E não, não foi esta a razão pela qual a minha relação com a música se atribulou. Afinal, tive muitas vezes reunidas estas condições e insistia em ouvir outras coisas que não material que nunca tinha ouvido. Contudo, isto não me impediu de ter um “BRAT summer”, de celebrar (novamente) Denzel Curry, de sorrir com Porter Robinson em SMILE 😀, de chorar com Adrianne Lenker em Bright Future, de partir Every Bridge Burning com Nails, de me perder All Life Long com Kali Malone (a quem devo uma parte do meu sucesso académico), de realçar a linda entrada que tive no Night Palace de Mount Eerie e de ficar de joelhos a ouvir o magnânimo e importantíssimo NO TITLE AS OF 13 FEBRUARY 2024 28,340 DEAD dos Godspeed You! Black Emperor. Porém, as experiências a que me refiro e a grande maioria das vezes que consumi música (tirando as minhas idas a festivais, sobre as quais já me irei debruçar) foi a conduzir, a tomar banho e a conviver com compinchas, e às vezes, estas coisas ao mesmo tempo – tirando o tomar banho, claro, não há cá marotices e o meu jipe também não tem chuveiro.
O carro foi o meu templo musical – bendito seja o transmissor FM. Sempre com o som calibrado entre a coluna do carro e o telemóvel para não estourar as colunas – a máquina tem mais de 30 anos -, foi nele que me viciei a fundo no Marquee Moon dos Television, que dava umas de Chalamet e cantarolava à la Bob Dylan, que vi um Cerro de São Miguel a entardecer ao som de uns Silver Jews ou American Football enquanto voltava para casa, que cantei triste e de madrugada a “I Know It’s Over” dos The Smiths, que ouvi minutos a fio de Zeca Afonso e Chico Buarque. A lista é infindável e percebi que conduzir pela minha querida cidade de Faro a ouvir as minhas malhas é das minhas coisas favoritas. Quando acompanhado por amigos então, melhor ainda.
Viajámos no tempo do hip hop tuga, de carro cheio a cantar em uníssono hinos de adolescência como “A Carta”, canção que une No 1, Vando Streets e Dillaz, “De Baixo da Mira” de Jackpot BCV, ou malhas mais recentes, como as engraçadas e cativantes aventuras de King Bigs. Noutra nota e como diferentes pessoas trazem diferentes músicas, também se cantou muito por lá Héroes del Silencio, ou a “Not Like Us”, do carrasco Kendrick Lamar. Mas mesmo fora do carro, ir acompanhado a bares ver versões embriagadas de música do cânone do rock, ou ir ao Reino Unido no verão (Vilamoura) só mesmo para ir ver um bar inteiro alimentado a Guinness cantar o seu hino nacional (“Sweet Caroline”, parece que espaços noturnos são obrigados a passá-la todas as noites), foram momentos em que, por escárnio ou não, a música fez boas memórias.
Já nos festivais, nunca gostei tanto de andar por lá. Como venho de uma zona fortemente negligenciada a nível de circuito musical, uma tarde num festival de verão dá-me mais concertos do que meses em casa. Então a maior parte dos concertos a que vou são nestes simpósios de capital onde também há música ao vivo. Ainda assim fui a um dos melhores concertos da minha vida no B.Leza quando Jeff Rosenstock nos proporcionou uma catarse emocional coletiva. Naveguei transversalmente a discografia de Earl Sweatshirt no Lisboa Ao Vivo. Partiu-se a loiça toda do Bafo do Baco, em Loulé, com a MAQUINA. O Primavera Sound e a sua desastrosa edição deram-me um choro bonito em Joanna Sternberg, o fascínio exacerbado em Tropical Fuck Storm que se seguiu à sua terrífica exibição e a beleza dos tais American Football. Mas foi no Sonic Blast, que se tornou um fácil favorito pela boa vivência e o ruído, e em Paredes de Coura, onde valorizei as experiências à necessidade de ouvir música faltando a concertos para ficar contemplativo entre conversas e natureza, que senti a plenitude do simples.
Ainda assim, há uma descoberta que tive este ano transato que foi um dos grandes catalisadores para a tal epifania desta celebração do simples. Inicialmente, a minha intenção com este texto era mesmo falar deste artista, que inconscientemente se tornou o meu mais ouvido de 2024 e refletir sobre este fenómeno pessoal pelo fator surpresa que está a si associado e pela pretensiosidade desse mesmo statement. Todavia, sou tagarela crónico que funciona como uma torneira estragada e havia mais coisas para serem escritas antes. A verdade é que, nos últimos 4 meses de 2024, Tz da Coronel foi uma presença assídua nas minhas audições. Começou como uma brincadeira, ao ter descoberto nas histórias do Instagram (sim, um difusor musical) o seu single “Qual é o Seu Desejo”, que passou a ser uma malha obrigatória em devaneios noturnos pelo Algarve, com o escárnio de personificar um certo estereótipo que eu e um amigo achávamos piada. Mas dei por mim a ouvir esta faixa múltiplas vezes ao dia. Deixou, portanto, de ser brincadeira. Tal vício levou-me a explorar outras canções, que não me agarraram de imediato. Foi novamente no carro, numa viagem com outro amigo que me introduziu mais a fundo ao artista, que me apercebi do quão infecciosa era a sua música.
O trap brasileiro sempre me chegou por ricochete. Nunca mergulhei muito no género por considerar muito do que oiço como meras réplicas do trap americano, sem grande distinção, inspiração ou estilo que me suscite o interesse e justifique a escolha (atenção que com isto não nego a importância que este movimento e nova escola de rappers está a ter para o hip hop brasileiro). Ora, este Tz, nome artístico de Matheus de Araújo Santos, rapper de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, também bebe muito do que é o cenário do trap que se faz nos Estados Unidos da América. As influências de Travis Scott, 21 Savage, Don Toliver e de velhas-guarda como 50 Cent escutam-se na música de Tz da Coronel. Mas é mesmo o seu estilo despretensioso e engraçado – veja-se a sua tag “Tz da Coro ha ha ha” ou algumas inflexões vocais que este brota – de quem se foca mais em melodias e em musicar vibes e vivências, que acabou por me atrair. Este acaba por absorver alguns dos problemas temáticos que predominam no trap internacional – e do rap em geral. Ao fim e ao cabo, não estamos perante um rapper conceptual ou alguém que queira ser mais do que um artesão de canções cativantes com barras que retratam aquilo que vive. Tz vive o seu sonho – viver da música – e as suas músicas retratam essa mesma vida de bon-vivant, de ostentação, amores e sexo, mas com consciência e, por vezes, até bastante introspeção relativamente ao impacto que estas coisas têm na sua pessoa – oiça-se “17 de janeiro” ou “Direto da Selva”. Nunca esquecendo de onde vem, este retrata as realidades que vive, num misto de peso e gratidão e a forma como lida com isso, como em “Mente Além” ou “Glock de Ouro”, mas sempre com ímpeto e ambição de chegar mais longe – adicione-se às anteriores “Acordado Eu Sonho” ou a “Não Temos Medo”.
Mas que não se conceptualize muito. O que torna a música de Tz tão aliciante é a facilidade com que ele transporta tudo isto de forma tão… simples. E depois de toda esta amálgama emocional que já há uma valente catrefada de palavras comecei a relatar, se calhar este meu fascínio pelo rapper – apenas um ano mais velho que eu (nasceu em 2001) – é mesmo uma alienação. Uma abstração da minha condição e um transporte para esta vida choruda, que tem problemas bem análogos aos meus, mas cujo tratamento em canções de trap melódicas, cheias de estilo e dum vozeirão a cantar, aliado a emoções transversais como tristeza, amor e sensações carnais, está no cerne para me perder nesta “selva”. Também ajudou ter sido uma febre coletiva a alguns amigos com quem tanto tempo passei, fazendo com que faixas como “Hoje Vou Marolar”, uma rasgada funk carioca, “Boa Sorte Mesmo”, uma reinvenção meio-drill do êxito de Vanessa da Mata, ou a sua mais recente “A Verdade Machuca”, um banger de amor, fossem hinos de convívios e saídas.
Há um Zé antes e pós-Tz. Não que a mudança tenha sido devido ao Tz, mas sim porque a sua chegada acompanhou uma altura bizarra da minha vida e não só ele esteve presente em momentos bons no meio de muitos momentos maus, mas como serviu de isolação às complexidades de ser um ser nos dias de hoje. Lá está: o simples. Houve muita simplicidade que vivi na música este ano que passou, que aqui deixo, que me fez perceber que eu nunca gostei tanto de música.
Talvez seja uma afirmação demasiado superlativa, mas sinto-me mais maduro enquanto consumidor e melómano. Mais focado em viver a música, sem rodeios. O mundo lá vai ardendo e não tende a acalmar. Não sou grande fã de resoluções de ano novo, porque o tempo é arbitrário e o calendário vira, mas a vida não. Porém, 2025 vai ser, obrigatoriamente, de mudança. Portanto, no que toca a música, a ver se descubro mais, se escrevo mais, se a partilho mais, se a convivo mais e, enfim, se a vivo mais. A ver se aprendo a ser mais simples. Antes que tudo isto arda de vez.