O meu primeiro disco

O fascínio pela aquisição e pela escuta de discos de vinil sempre foi algo difícil de explicar para mim. Nunca consegui identificar exatamente o momento em que essa paixão começou, mas ela foi surgindo naturalmente. Havia algo de especial nos discos físicos que me chamava a atenção, algo que ia além do som que eles produziam. Eu adorava observá-los. O tamanho megalómano dos discos de vinil permitia-me apreciar as capas em todo o seu esplendor, examinando todos os seus detalhes em doze polegadas. Era quase como segurar uma obra de arte nas mãos, uma experiência que os CDs, menores e mais recentes, nunca me conseguiram proporcionar. Talvez, no fundo, seja um amor por aquilo que carrega história, por algo que evoca um certo espírito de antiguidade. E, sendo o vinil uma antiguidade musical, é provável que seja exatamente essa combinação de história e música que o torna tão místico para mim.

Há cerca de cinco anos recebi o meu primeiro e único leitor de discos. Quando o abri pela primeira vez, não havia ainda um disco novo para o acompanhar. No entanto, pouco menos de uma semana depois, chegou como prenda de uma pessoa querida o disco que iria estrear a agulha do meu leitor: Strange Days dos The Doors, o disco que me fez apaixonar pela música.

Strange Days era um disco que já tinha ouvido, mas como ainda não tinha criado a cultura de ouvir um álbum de fio a pavio, ainda não tinha criado a relação com o disco como deveria ser, de olhar para ele como uma obra de arte com início, meio e fim.

Para a primeira audição achei pertinente, como estava a estrear o disco e o leitor, sentar-me e ouvir o disco parado com as luzes desligadas. Foi das experiências mais importantes que tive a nível musical porque despertou em mim um amor pela música que não sabia que tinha.

Naquela altura tinha rotulado o disco como o meu favorito, em parte porque já tinha ouvido algumas das músicas com a minha mãe e havia algo especial na forma como aquelas canções me agradavam, mas também na maneira como ela falava do álbum. Recordo-me de ela dizer que era o seu preferido, e isso despertava em mim uma grande curiosidade: queria entender por que motivo este disco a tinha marcado tanto. Foi só depois de várias audições que comecei a compreender o porquê, e ainda assim achei curioso o facto de, ao tentar criar uma ligação com o disco, eu estar, de certa forma, a procurar entender uma parte dela.

Enquanto ouvia o álbum, não conseguia deixar de pensar no que a minha mãe teria sentido quando o escutou pela primeira vez. Ela contou-me que o ouviu ainda antes de fazer 18 anos, na mesma fase da vida em que eu me encontrava quando o descobri. Essa coincidência gerava uma ligação temporal com aquele disco que, embora não fosse o mesmo objeto físico, despertava-me um grande fascínio.

Na minha mente, criava cenários em Couto de Cambeses, onde ela cresceu, imaginando-a sentada, talvez num quarto escuro, tal como eu agora fazia, enquanto o som do órgão de Ray Manzarek preenchia o espaço ao seu redor. Eu visualizava-a a ouvir as mesmas palavras que agora me ecoavam nos ouvidos, como se, naquele momento, a música criasse uma ponte entre nós, unindo as nossas experiências apesar das décadas que nos separavam.

Eu estava perante um portal para partilhar algo com a minha mãe, um pedaço de quem ela era antes mesmo de eu existir. E, de forma paralela, ao tentar compreender o que ela sentiu, acabava por descobrir mais sobre mim mesmo.

Cada faixa parecia desmontar as minhas certezas, moldando a minha mente ainda jovem e maleável para uma tristeza que eu não conhecia, mas que, ao senti-la, trazia consigo uma inesperada descoberta interna. “You’re Lost Little Girl” era uma dessas canções que ecoavam um sentimento de desorientação. A melodia delicada e melancólica parecia sussurrar dúvidas, enquanto Jim Morrison, com a sua voz grave e quase hipnótica, me convidava a encarar as minhas próprias incertezas: You’re lost / Tell me who are you?.

Em contraste, “Moonlight Drive” era etérea, quase onírica, levando-me para um lugar surreal onde o amor e a morte se entrelaçam. A canção era um convite a abandonar as amarras da realidade e a submergir num espaço de pura introspeção e fantasia, um tema recorrente no álbum.

Depois vinha “People Are Strange”, uma faixa que, com a sua melodia quase circense e as letras diretas de Morrison, parecia capturar a essência da alienação. When you’re strange / Faces come out of the rain / When you’re strange / No one remembers your name, cantava ele, e eu sentia aquelas palavras como um reflexo da minha própria sensação de desajuste. A música não oferecia respostas, mas meditava sobre a estranheza como parte inevitável da experiência humana. Era desconcertante e fazia-me sentir só.

Mas nenhuma faixa me abalaria tanto quanto a última, “When the Music’s Over”. Era como o clímax de tudo o que Strange Days representava. A música começava com uma energia crua e crescente, um crescendo que parecia acumular todas as emoções desconcertantes do disco, apenas para as explodir em versos carregados de urgência. Morrison gritava palavras que ressoavam como verdades inescapáveis: We want the world, and we want it… now!“. Era uma chamada para agir, para confrontar o vazio, mas também um aviso de que o tempo era limitado. E quando ele sussurrava: Cancel my subscription to the resurrection“, eu sentia uma rejeição a dogmas e conformidades, como se ele estivesse a desafiar tudo o que nos impõe um sentido predeterminado de existência. Essa rebeldia, misturada com a reverência pela música como força unificadora, era arrebatadora. Depois vinham os versos que mudariam tudo para mim: For the music is your special friend / Dance on fire as it intends / Music is your only friend / Until the end. Foi nesse momento que entendi o que o disco tentava dizer desde o início.

Ao longo de cada faixa, Strange Days tinha-me despojado de todas as certezas, empurrando-me para um lugar onde a desorientação era inevitável. E, no entanto, naquele clímax, Morrison entregava-me uma verdade simples e poderosa: a música é a minha companheira.

O álbum destruía-me todas as ilusões que tinha construído sobre o amor, o propósito e até a vida em si. Obrigou-me a aceitar que estamos, de facto, perdidos, que o mundo é estranho, que tudo é transitório e muitas vezes incompreensível. Mas essa desconstrução não era o fim. A música aparecia como a única constante, uma força que dá sentido ao caos. Mesmo quando tudo falha, a música permanece, carregando-nos nos momentos de dúvida e tristeza, e oferecendo-nos a redenção que nenhuma outra coisa parece conseguir.

Quando o disco terminou, com a intensidade de “When the Music’s Over” ainda a reverberar, senti-me transformado. Percebi que, mesmo nos dias mais estranhos, mesmo quando o mundo desaba, a música está lá, uma amiga fiel até ao fim. Era por ela que fazia sentido viver, e foi nela que encontrei a força para continuar a gritar, dançar e existir. Não sei bem explicar porquê, mas senti que a minha mãe teria pensado o mesmo.

O que mais me fascina num disco é a sua história. Quando olho para Strange Days, ele é mais do que um álbum. É um objeto que me acompanha, um porto seguro das turbulências da minha vida. Penso nele como um urso de peluche, que estará sempre à minha espera, pronto para me dar o conforto de que preciso nos dias mais estranhos.

Filho do rock, do doom e de todos os géneros musicais que nos façam abanar as ancas e a cabeça, reside em Braga onde estuda engenharia. Poderão encontrá-lo em qualquer cave onde haja barulho e em qualquer local onde haja cerveja a preços abaixo da média.

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