LEFT., uma força da natureza que nasceu para fazer música

O novo trabalho de António Graça, mais conhecido no mundo artístico por LEFT., representa o mais recente passo em frente no seu caminho musical, destacando-se não apenas por ser o primeiro álbum inteiramente em português, mas pela ousadia de o apresentar como um “álbum-jogo”. Ora, estamos a falar de um conceito interativo que transcende a mera escuta musical, convidando quem ouve a participar numa experiência imersiva. Em Limbo, LEFT. mostra como a música pode ser tão maleável e criativa quanto um jogo, transformando-a numa ferramenta de introspeção e reinvenção.

Deste Limbo, quero começar por destacar as faixas “Intro” e “Limbo (Fim)” que funcionam como pontos de partida e de chegada desta jornada sonora, bem como deste jogo. “Intro” é uma imersão introdutória no universo do disco, determinando o tom atmosférico com elementos minimalistas que evocam a expectativa e a incerteza. Já “Limbo (Fim”) finaliza o álbum de uma forma introspetiva, quase como uma conclusão em aberto, sugerindo que, mesmo depois do jogo terminar, as possibilidades de escolha e de reflexão perduram. Pelo meio, cruzamo-nos com cinco pequenas faixas (“Level 1”, “Level 2”, “Level 3”, “Level 4” e “Level 5”) que funcionam como interlúdios narrativos, como de gravações telefónicas se tratassem, orientando o ouvinte a tomar decisões sobre qual caminho seguir dentro da narrativa musical. Essas escolhas reforçam o conceito de “álbum-jogo”, onde cada nível desencadeia um novo desafio ou uma nova emoção, explorando múltiplas temáticas.

Nível 1: ‘Para levantar a cabeça e seguir em frente, seguir para a faixa três (“Siga”). Para perder a cabeça e partir tudo à volta, seguir para a faixa quatro (“Violento”)’

“Siga” abre o disco com uma energia vibrante e contagiante, misturando beats eletrónicos minimalistas com camadas de sintetizadores, criando uma atmosfera de urgência. Liricamente, é uma reflexão sobre identidade e, ao mesmo tempo, um convite à ação e ao movimento, ecoando a ideia do jogo (e da vida) como uma experiência dinâmica e evolutiva. Marcado por um registo bastante sombrio surge “Violento”, que traz a força poética de L-ALI e que acrescenta uma dimensão lírica intensa assinalada por traços de hip-hop. Ouvem-se beats graves e texturas densas, que contrastam com a entrega vocal de LEFT., originando uma tensão sonora que encaixa perfeitamente na temática do combate e confronto do primeiro nível. No remate final, ainda surge Rossana a cuspir uns versos divinos e pesados.

Nível 2: ‘Para continuar a relação, seguir para a faixa seis (“Pulso”). Para acabar e voltar a tentar, seguir para a faixa sete (“Volto a Ti”)’

LEFT. avança provando-nos que o sucesso destas canções se deve essencialmente a um equilíbrio perfeito entre vulnerabilidade e força. Exemplo disto é “Pulso”, que se destaca pela participação etérea de JÜRA, cuja voz suave acrescenta um toque delicado e emocional. Com versos a explorar o desejo e a conexão, é uma faixa que apresenta uma construção melódica gradual, que culmina num refrão pujante, simbolizando a pulsação vital da fase de exploração do jogo. Casa bem com o tema “Volto a Ti” (que levou ao Festival da Canção 2024). Com arranjos simplificados que dão espaço à emotividade da voz de LEFT., a faixa reflete sobre arrependimento e reconciliação, tornando-se talvez o momento mais contemplativo e visceral não só deste como de todos os níveis.

Nível 3: ‘Para sair de Lisboa, em direção Norte, seguir para a faixa nove (“A1 Norte”). Para sair à noite e ir dançar, seguir para a faixa dez (“Dançar”)’

Funcionando como uma espécie de pausa contemplativa temos “A1 Norte”. Carregada de nostalgia e referências subtis a viagens físicas e emocionais, é sustentada por uma melodia minimalista que ecoa distanciamento e introspeção. Em contraste, acontece também uma explosão de movimento e ritmo que surge em forma de “Dançar”, uma faixa que desafia o ouvinte a participar fisicamente na experiência. Tem nela embutida uma produção eletrónica potente e exímia, e uma estrutura lírica repetitiva, criando um loop quase hipnótico. Nos últimos segundos, fazem-se ouvir influências de um Fred again.. que nos faz querer e chorar por mais. 

Nível 4: ‘Se queres mais, seguir para a faixa doze (“Quero Mais”). Para enfrentar o vazio e o silêncio, seguir para a faixa treze (“Silêncio”)’

Agora, já com muita dança no estômago, é tempo de ouvir “Quero Mais” que explora o desejo e a ambição através de uma sonoridade rica e camadas vocais. Os versos insistem na insatisfação como motor para o progresso, um tema central deste nível, e a produção, embora simples, revela-se eficaz na construção de uma narrativa sonora crescente. Numa direção completamente diferente, LEFT. entrega-nos “Silêncio”, a faixa mais desconstruída que alguma vez nos presenteou, servindo quase como um espaço de reflexão. A ausência de elementos rítmicos dominantes intensifica as letras introspetivas, onde LEFT. reflete sobre as suas escolhas e caminhos percorridos.

Nível 5: “Aqui não tens mesmo escolha. Lamento imenso.”

“Não Estou Bem” encapsula a vulnerabilidade que LEFT. associou a este disco. A sonoridade melancólica e os versos frontais criam um impacto emocional forte, representando o clímax emocional da narrativa. Com um início a soar a C. Tangana, “Chora” encerra a jornada com uma nota de libertação. A combinação de instrumentação crua e arranjos eletrónicos subtis simboliza o fim de um ciclo e a possibilidade de recomeço, alinhando-se com a ideia do jogo como um processo de constante renovação.

*

Limbo é uma celebração da criatividade musical em Portugal, constatando como o nosso país pode ser um terreno fértil para ideias arrojadas e revolucionárias. Olho para esta escolha do português como língua predominante não apenas como uma viragem artística, mas também como uma forma de LEFT. se aproximar ainda mais do público nacional e de transmitir uma vulnerabilidade ainda mais palpável. Com temas como insatisfação, desejo e a tensão entre determinismo e livre-arbítrio, LEFT. propõe reflexões filosóficas profundas que se ajustam ao formato de jogo, questionando a ideia de controle sobre os nossos destinos. Musicalmente, este disco mantém a assinatura pop eletrónica de LEFT., mas com um tom mais introspetivo. É de sublinhar que a participação de artistas como L-ALI, Rossana e JÜRA acrescenta diversidade à experiência, reforçando a ideia de colaboração como um elemento central na criação de algo único. LEFT. quis explorar uma abordagem experimental e fê-lo com sucesso – é visível nos arranjos e nas texturas sonoras que desafiam o ouvinte a explorar cada faixa como uma nova fase do jogo. E esta ideia de música como jogo resgata a exclusividade da arte, algo que LEFT. claramente valoriza. Ele transforma o ato de ouvir num processo ativo, em que cada pessoa cria a sua própria narrativa dentro do universo de Limbo. É uma metáfora perfeita sobre a vida e a criatividade: como nos jogos, há sempre espaço para novos começos, escolhas e interpretações. Limbo não é apenas um álbum, é uma afirmação de que a música portuguesa pode ser profundamente criativa e ambiciosa. LEFT. posiciona-se como um dos artistas mais inovadores da sua geração, oferecendo ao público uma obra-prima que não só entretém, como também desafia e inspira.

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
Artigos criados 34

Limbo, onde a criatividade e a genialidade flutuam.

Artigos relacionados

Digite acima o seu termo de pesquisa e prima Enter para pesquisar. Prima ESC para cancelar.

Voltar ao topo