Em 2014, Carlos de Jesus e Carolina Brandão encontraram-se musicalmente. Quando Carolina se juntou a um projeto de folk que Carlos dividia com um amigo para tocar baixo, nada faria adivinhar a história escrita a partir daí. Quando a banda não conseguiu arranjar baterista, Carolina passou para detrás do kit e, a partir do momento que o amigo de Carlos abandonou a banda, restaram apenas Carolina na bateria e Carlos na guitarra. Assim se formaram os Sunflowers.

Ao longo dos últimos dez anos, os Sunflowers transformaram-se numa das mais influentes e acarinhadas bandas do underground português. Com o seu rock de garagem pintado desde o mais “básico” punk dos primeiros EPs até à sinergia psicadélica dos álbuns que sucederam a The Intergalactic Guide To Find The Red Cowboy (2016), a banda abriu caminho para uma série de projetos a partir do momento em que o seu “pum-pa-pum-pa-pum-pa” se fez ouvir. Foram a primeira banda a ser agenciada pela Pointlist e, com o trabalho dinamizado pela O Cão da Garagem, editora e coletivo profundamente ligado à história dos Sunflowers, um dos principais impulsionadores da cena alternativa portuense da segunda metade da década de 2010.

Hoje, os Sunflowers são uma banda muito diferente daquela que começou a gravar The Sunflowers EP (2014) entre o Porto e Arouca. Expandiram o seu som e expandiram a própria banda. Em 2018, Frederico Ferreira, baixista dos 800 Gondomar, passou a ser o terceiro membro dos Sunflowers. E com a pandemia, os Sunflowers quase terminaram e mudaram outra vez. Entre burnouts, depressões, e desafios artísticos, foram forçados a abrandar e a refletir sobre o futuro da banda. A Strange Feeling of Existential Angst (2023), o mais recente álbum do power trio portuense, foi influenciado por todo esse estado de espírito.

Em conversa com a Playback, Carlos e Carolina refletem sobre dez anos de histórias, a mudança de mentalidade da banda com o passar do tempo, o que esperar das comemorações em torno de uma década da banda e o que se segue para os Sunflowers.

Cartaz do concerto de celebração de 10 anos de Sunflowers na Socorro a 26 de outubro
Cartaz do concerto de celebração de 10 anos de Sunflowers na Socorro a 26 de outubro
Qual é a vossa história com a África do Sul?

[Carlos de Jesus] [Risos] Isto tudo começou porque, no nosso primeiro concerto em Lisboa, no Sabotage em fevereiro de 2015, onde estavam para aí umas dez pessoas, estava um casal sul-africano que nos tirou algumas fotografias. Cerca de um ano depois disso, encontrei as fotografias na Internet-

[Carolina Brandão] No Tumblr.

[Carlos] Exatamente. E pus-me a falar com o rapaz, ele contou que era da África do Sul, que organizava lá um festival. Perguntou se queríamos ir lá tocar e dissemos que sim. A partir daí, desenvolvemos uma amizade com eles. Quando eles vêm a Portugal, ficam em nossa casa, e quando nós vamos lá, ficamos em casa deles.

[Carolina] Na realidade, vamos lá para estar com eles.

[Carlos] E aproveitamos que estamos lá e tocamos.

[Carolina] Da última vez que fomos à África do Sul, fomos a mais sítios além da Cidade do Cabo e vimos mais do país. Da próxima vez, vamos ver ainda mais, provavelmente.

[Carlos] E também já temos lá pessoas que nos viram em anos anteriores e que voltam para nos ver.

[Carolina] Eles lá não têm propriamente um circuito muito grande porque a África do Sul é literalmente na ponta de África. Qualquer banda estrangeira que vá lá tocar é uma cena fixe para eles.

Por falar em circuito, que diferenças sentem entre o circuito independente português que vos viu nascer há dez anos e o circuito atual? O que sentem que mudou e o que sentem que não se alterou?

[Carolina] Há menos salas agora, especialmente depois da pandemia. Houve muita coisa que apanhamos no início que já fechou.

Sim, salas como o Sabotage já não existem.

[Carlos] Infelizmente.

[Carolina] E muitos outros sítios. O segundo sítio onde tocamos, que era o Canhoto, agora é um sítio de gin.

[Carlos] Um sítio de gin onde trabalhava o Fred. É verdade.

[Carolina] Full circle [risos]. E acho que há menos música editada.

[Carlos] Não sei se é por causa disso.

[Carolina] Não sei se é por estar mais velha, mas na altura parecia que havia bandas a aparecer todas as semanas e agora parece que há cada vez menos. Ou quando aparecem, é com pessoal que já estava envolvido na cena.

[Carlos] Há bandas novas, mas não há músicos novos. É mais isso.

[Carolina] A malta mais jovem também teve a pandemia a impactar a fase fulcral da vida para te envolveres nesta cena da música. Mas o circuito acho que continua a ser o mesmo, honestamente. São os mesmos players de sempre.

[Carlos] Mesmo que muitas venues tenham fechado, muitos promotores começaram a trabalhar com outras salas. Portanto, continua a ser o mesmo circuito. Se calhar está um bocadinho mais fechado a novas bandas, eu acho. Especialmente as salas maiores. Um Maus Hábitos ou um Musicbox, por exemplo, estão mais fechados a bandas novas. Mas agora parece que estão um bocadinho mais atentos às coisas, espero eu.

[Carolina] As redes sociais estão muito mais difíceis agora. A promoção é muito mais difícil.

Há dez anos, o Tumblr movia uma comunidade específica, por exemplo. Agora está tudo muito fragmentado.

[Carolina] E é mais difícil chegar onde quer que seja. É tão estranho o algoritmo porque são-me sugeridas cenas que não faço ideia porque me estão a aparecer. É mais complicado fazer o que quer que seja ter um alcance muito grande.

Sim, e às vezes… parece que a mentalidade mudou. Lembro-me de um músico me dizer que houve ali um período no final da década de 2000, início dos 2010, onde parecia que tudo era possível. E agora o sentimento é totalmente o inverso. Os 800 Gondomar, por exemplo, eram uma banda emergente há dez anos e continuam a sê-lo em 2024.

[Carlos] Sim, mas no caso deles, não ajudou eles terem parado o tempo que pararam. Porque isto agora se paras, é como se desaparecesses. Eu às vezes gostava muito de desaparecer e continuar a ser relevante [risos]. E isso é uma coisa um bocado difícil de acontecer agora. Se não tiveres uma presença muito ativa na Internet, ninguém sabe bem quem és. Quando começámos, o que fazíamos era criar um evento de Facebook e isso dizia-nos quantas pessoas iriam ao concerto. Agora já não tens isso. É um bocado difícil perceber quantas pessoas poderão aparecer para um concerto teu. Fazes uma publicação no Instagram, tens 50 gostos e depois ficas à espera que o pessoal que meteu gosto e viu a publicação apareça.

[Carolina] Mas também é um bocado complicado porque temos muito aquela mentalidade de sermos contra-a-corrente e de não alinharmos no jogo estúpido das redes sociais.

[Carlos] Eu continuo a sentir isso.

[Carolina] E depois lixamo-nos. Mas é o que é. Quando lançámos o último álbum, pensámos se queríamos mesmo promover o disco nas redes porque o disco é bastante contra a cena toda da Internet e de viver na bolha. E iríamos utilizar a bolha para o promover. Parecia contraditório. Mas caímos no erro de o fazer depois. Somos demasiados totós, acho eu [risos].

[Carlos] Dez anos e ainda não aprendemos [risos].

Acham que foi necessário colocar cá fora o A Strange Feeling of Existential Angst para os Sunflowers continuarem? Como é que a vossa relação com a existência da banda foi mudando com o tempo?

[Carolina] Acho que ainda nos sentimos um bocado como quando lançamos o último disco. Ou seja, precisamos de lançar algo para continuarmos a andar para a frente. A pandemia foi um golpe muito duro, mesmo.

Passaram mal?

[Carolina] Só no primeiro semestre de 2020, perdemos 40 concertos. Íamos tocar em todo o lado. Na África do Sul, na China, na Europa. De repente, caiu tudo. E com isso caiu tudo o que tínhamos feito até aí. Nós agora estamos basicamente a tentar fazer tudo o que fizemos nos últimos dez anos, mas com outros contactos. É o que é.

A rede de contactos que tinham colapsou?

[Carlos] Sim.

[Carolina] Tal como em Portugal, houve muita gente-

[Carlos] Que desistiu.

[Carolina] Houve muita gente lá fora que conhecíamos que parou de fazer cenas ou sítios que fecharam. É frustrante fazer sempre a mesma coisa e ter sempre os mesmos resultados. É tudo muito bonito quando estamos em palco, mas estamos em palco durante uma hora e um dia tem 24 horas. É cansativo. Até porque já não temos as mesmas costas que tínhamos há dez anos. E a falar a sério, estar num carro durante 12 horas já me custa. Mas o que vamos fazer? Podíamos desistir de tudo e fazermos algo completamente diferente com as nossas vidas, mas acho que isto já está demasiado integrado nas nossas personalidades e no dia-a-dia das nossas vidas.

[Carlos] É um bocado aquilo que somos, não é?

[Carolina] É isto que fazemos há dez anos. A nossa relação sempre foi formada com base nisto. Portanto, acaba por ser algo difícil afastarmo-nos dessa parte. Mas vamos fazendo as coisas à espera que volte a ser bom, que fiquemos outra vez com pica para continuar.

[Carlos] Acho que estou agora com a mentalidade de querer simplesmente mandar coisas cá fora porque senão aquilo fica guardado no meu computador e isso é um desperdício.

[Carolina] Também acho que, ao longo dos anos, é mais difícil dar a volta às coisas. Quando uma pessoa tem 20 anos, sentes: que se lixe. Sou eu contra o mundo.

[Carlos] Tens a pica toda.

[Carolina] Pensas que toda a gente se vai afastar para tu passares. E com o passar do tempo, são cada vez mais golpes, burnouts, depressões. É fodido continuar a dar sempre a volta. Porque apesar de estarmos muito ligados à música, não temos só isso na vida. Temos outras cenas. E tudo o que acontece acaba por nos afetar. As pessoas dizem que tens de ser meio louco para ser artista e tens. Senão, não andavas sempre nesta luta.

Há uns anos, vocês deram uma entrevista em que falavam que tinham trabalhos além da vossa vida musical. Isso ainda se mantém?

[Carolina] Isso foi há muito tempo e, entretanto, a nossa vida mudou. Eu estava a tirar uma licenciatura em biomédicas e fiz três anos antes de desistir. Se calhar foi uma decisão errada, mas na altura não conseguia mesmo acabar e dediquei-me a isto. E correu bem, na altura. Foi o ano em que demos mais de 100 concertos, em 2018. Mas lá está. Estava tudo a correr bem, parecia que ia tudo explodir, e depois: pow. De resto, sempre estivemos ligados à música. Ele grava bandas e produz e eu até há pouco tempo tive um estúdio. Acho que também aprendemos a levar as coisas com mais calma e a pensar nelas antes de as fazer.

Uma digressão agora é mais pensada do que na altura?

[Carolina] Sim, e temos sorte porque temos a possibilidade de fazer isso. Acho que só houve uma digressão em que tivemos de fazer um grande esforço, a primeira que fizemos com os 800 Gondomar pela Europa. Por essa altura, já tínhamos feito duas digressões com a nossa carrinha, mas como éramos mais tivemos de alugar uma maior. E foi uma estupidez desgraçada, olhando para trás. Fizemos a digressão em novembro e-

[Carlos] Tivemos bué concertos cancelados.

[Carolina] Porque era inverno [risos]. Lembro-me de estarmos na Alemanha e aquilo estar tudo cheio de neve.

[Carlos] E tivemos um na Itália que, por causa de um temporal, inundou tudo e um dos concertos não aconteceu.

[Carolina] Mas foi o que foi na altura. Safamo-nos, mas fez parte do nosso percurso. Imagina, ao mesmo tempo, foi uma cena altamente porque os 800 eram os nossos grandes amigos de viagem e foi toda uma experiência. Mas a partir daí, percebemos que tínhamos de fazer as cenas por nós e a sério. É com coisas dessas que sabemos o que fazer e não fazer. E o que não fazer é digressões no inverno. Não tem lógica nenhuma.

[Carlos] No máximo, outubro.

[Carolina] Se vais para o norte [da Europa] em dezembro… [Risos]

[Carlos] Acho que é mais as viagens e não tanto os concertos em si. Lembro-me de estarmos em Itália com a previsão de -4ºC, de estarmos a passar a noite no topo de uma colina, e de acharmos que íamos espetar a carrinha carregada porque a estrada ia estar cheia de gelo. Mas de manhã estava tudo bem e descemos normalmente. Mas é uma planificação e logística um bocado desnecessária para se fazer no inverno.

Sunflowers em 2017 por Jonathan Ferreira
Sunflowers em 2017 por Jonathan Ferreira
A nível musical, que ilações tiraram? Lembro-me de ler uma entrevista vossa em que diziam que refariam muitas coisas do segundo EP [Ghosts, Witches and Pb & Js], por exemplo.

[Carlos] Do primeiro e do segundo, acho eu. Sempre que gravo um disco fico a pensar que nunca mais quero ouvir aquilo na vida. Sei que vou tocar as músicas depois, mas vão soar diferentes. Agora, olhando para trás, há muito que faria de diferente tanto no primeiro EP como no segundo e nos dois primeiros álbuns.

[Carolina] No terceiro, não.

[Carlos] Esse estava tão bem que foi só copiarmos as demos para o gravarmos no estúdio. Mas acho que vamos evoluindo cada vez mais, principalmente no processo de compor, escrever e gravar um disco. Quando acabamos de fazer um disco, já temos outro tipo de material e as músicas têm outra mentalidade por detrás. Lá está, quando acabamos de gravar uma música, a música para mim já está diferente quando a vamos tocar ao vivo. Não sei se contigo também é assim?

[Carolina] Sim.

[Carlos] A “Sleepy Sun” que tocamos agora já não é a que está no disco. A “Mama Kim” que tocamos agora não é a “Mama Kim” do segundo EP.

[Carolina] Isso é porque aprendemos a tocar, entretanto.

[Carlos] Também é verdade. Acho isso muito engraçado. Tanto para mim como para a Carolina, Sunflowers foi a nossa primeira banda a sério, em que começámos a ter mais concertos e a explorar mais a nossa musicalidade. Acho que há uma evolução bastante óbvia do primeiro EP até ao último álbum, por exemplo. Nota-se que foi uma banda que foi aprendendo a tocar, digamos assim. Ainda recentemente estava a falar com o Manuel Molarinho dos Baleia Baleia Baleia e ele dizia-me que, no início, achava que éramos muito inocentes e isso notava-se na nossa música. Era três acordes, pum-pa-pum-pa-pum-pa, e siga. Agora, tínhamos perdido um bocadinho isso, sim, mas tínhamos ganho outras coisas. Eu concordo com essa análise. Quando começámos, fazíamos as coisas com uma certa inocência. Com o tempo, ganhamos outro sentido de musicalidade e crítica com o que fazemos. Essa evolução é natural, acho eu. E acho que nestes dez anos, dá para notar perfeitamente.

A entrada do Fred na banda em 2018 modificou a vossa abordagem à composição? Ele já tinha tocado com vocês ao vivo.

[Carlos] Sim. Ele apareceu depois de termos gravado o Castle Spell, não foi?

[Carolina] Sim. Ele andava a tocar connosco em alguns concertos nas Super Novas, em 2018. E lembro-me perfeitamente do dia em que lhe fizemos o convite. Estávamos no Maus Hábitos para vermos Moon Preachers e perguntámos se ele queria vir connosco em tour e ele disse que queria. Isto foi mais ou menos na mesma altura em que os 800 decidiram parar por opção própria. Nós agora estamos a fazer recolhas de gravações antigas para fazer uma compilação e temos coisas desde 2015 e conseguimos notar mesmo quando ele entra na banda. Os ensaios começam a ser jams muito mais prolongadas e passamos a conseguir manter um certo ritmo naquilo que estávamos a tocar.

[Carlos] Agora, o porquê de ter sido o Fred e não outra pessoa, isso é que não sei [risos].

[Carolina] Era um gajo simpático [risos]. Ele passava férias connosco, estávamos sempre juntos. Foi muito natural.

[Carlos] Sim. Ele não tinha muita coisa para fazer e andava connosco [risos].

[Carolina] Desde a altura em que gravamos o primeiro EP dos 800, ele passou a passar muito tempo connosco na nossa casa antiga e desenvolveu-se essa amizade.

Estamos aqui a falar dos 800 Gondomar e os 800 foram uma das bandas editadas pela O Cão da Garagem, a editora e coletivo muito ligada à história dos Sunflowers. Atualmente, O Cão da Garagem está “adormecido”. O que motivou esse adormecimento e há algum futuro para esse projeto?

[Carolina] O motivo para o adormecimento é muito simples: um burnout completo.

[Carlos] Chegou a uma altura em que ou continuávamos com O Cão da Garagem ou com os Sunflowers. E acho que decidimos continuar com os Sunflowers.

[Carolina] Sinceramente, acho que chegou a um ponto na minha vida… Sempre fui eu que tratei muito da parte de logística d’O Cão da Garagem, das partes mais chatas. E nós fomos apanhando bandas pelo caminho e fazendo cenas com elas. A ideia sempre foi: nós tínhamos uma casa grande e queríamos ter um espaço aberto para o nosso círculo de amigos ir lá fazer coisas. Toda a ideia foi criar um coletivo para que as pessoas se conhecessem umas às outras.

[Carlos] E explorarem.

[Carolina] Sim, e partilharem trabalhos entre si. E foi isso que aconteceu. A partir disso, houve muita coisa e muitos projetos que se criaram.

[Carlos] Mesmo o círculo de amigos também surgiu daí, não foi?

[Carolina] Sim. Agora, o que aconteceu foi: eu estava na faculdade, a tirar um curso lixado, tinha a banda, e chegou a um ponto em que não conseguia mais. Simplesmente não tinha mais disponibilidade mental para isso. E depois é como tudo: se não há ninguém a querer saber, as coisas acabam por ir um bocado abaixo. Toda a gente a começou a crescer e a ter outras coisas a acontecer ao mesmo tempo-

[Carlos] E outros projetos.

[Carolina] Mas O Cão da Garagem nunca deixou de existir. Todos os verões, organizamos um encontro que é “O Cão da Garagem vai de férias” e temos sempre 15 a 20 pessoas a passarem uma semana connosco. Nós nunca quisemos que O Cão da Garagem morresse completamente porque nunca quisemos desperdiçar o que tínhamos criado. Foi uma coisa que criámos e que se tornou minimamente consistente com o tempo. É uma pena deixar isso morrer na praia porque estamos cansados dessa vida. Portanto, está adormecido, mas a nossa ideia sempre foi voltar. Para fazer o quê? Não sabemos bem ainda.

[Carlos] Há-de voltar. Não sei se como editora, mas vai.

[Carolina] Como editora, não sei. É muito cansativo.

[Carlos] Sim, e a nossa ideia com O Cão da Garagem sempre foi nós ajudarmos com os custos. Não tiramos lucro nenhum, só queríamos ajudar as pessoas. E isso é uma péssima forma de gerir uma editora [risos]. Porque depois havia discos que não corriam tão bem…

[Carolina] Mas foi muito engraçado como as coisas ocorriam dentro d’O Cão da Garagem. O exemplo dos El Señor é muito bom. Um dia, os El Señor queriam fazer concertos em Fafe e nós falámos com o Modas [da Pointlist] e marcamos lá um concerto – mas só tocávamos se tocássemos com os El Señor. E esse concerto acontece. Marcamos, tocamos, vimos a banda, e dissemos ao Modas que ele tinha de pegar neles porque eles eram altamente. E ele pegou neles. Então, basicamente, o que acontecia era que nós íamos tocar a sítios, víamos bandas de quem gostávamos, e falávamos ao Modas dessas bandas. Mas depois acontecia que as pessoas ficavam fartas, cansadas, e as bandas acabavam. E continuar a fazer tudo isso funcionar com bandas que apareciam e desapareciam… também não é muito fixe, não é? Porque se estamos com interesse em fazer coisas mas não existe interesse em retribuir, então não vale a pena continuar. Não sei como é que o Modas continua a ter vontade para tudo. É algo que não consigo compreender [risos]. É uma pessoa que veste sempre a camisola. É mesmo fascinante.

Como nasceu a vossa relação com a Pointlist?

[Carolina] Tem muita piada porque muitas vezes somos os pioneiros por acaso. Aquele concerto que falámos no início da entrevista, o do Sabotage, foi o Modas que nos marcou esse concerto. Mas não me lembro de como ele nos marcou.

[Carlos] Acho que foi na altura em que ele era programador da SHE [Sociedade Harmonia Eborense]. Ele marcou acho que foi uns três ou quatro concertos para nós, incluindo esse no Sabotage.

[Carolina] Foi mais. Temos esse cartaz algures. Mas ele tinha um festival e queria começar a agenciar bandas. E nós deixamos que ele começasse connosco.

Foram a primeira banda a ser agenciada pela Pointlist, então?

[Carolina] Foi um bocado isso. Também nos aconteceu muitas vezes irmos tocar a primeiras edições de festivais por causa disso e, quando lá voltávamos depois, quer para tocar outra vez ou como público, as pessoas lembravam-se de nós e vinham falar connosco. No Basqueiral isso aconteceu, e mesmo fora de Portugal também. É muito recompensador. Lá está, muitas vezes fomos os primeiros e ficámos por aí. Abrimos caminho para os outros.

Como se sentem perante as portas que abriram? Há uma linha escrita entre vocês e, por exemplo, o surgimento de uma banda como os MAQUINA.

[Carolina] Não sei. É difícil falar sobre isso sem parecer um bocado presunçoso [risos].

[Carlos] Continuo a achar que não fizemos nada disso [risos]. Apesar de em muitas conversas, incluindo com os MAQUINA., nos dizerem isso. Por exemplo, o Halison [baterista dos MAQUINA.] com os Elephant Maze, que era outra banda dele – chegou-se a falar de os lançarmos pela O Cão da Garagem. E o Halison na altura disse que tínhamos aberto portas para muita coisa, e eu não reparo ou não reparei nisso. Não estou atento a isso. Tu estás?

[Carolina] Acho que isso é uma das cenas que nos dá vontade de continuar. Quando pessoal vem ter connosco a dizer que os inspiramos. É fixe, não é? Uma pessoa sente-se bem. Por exemplo, no meu caso, bué gente comenta a cena de ser uma mulher a tocar bateria. Já me aconteceu muitas vezes virem ter comigo e dizerem que as inspirei a começar a tocar. Isso é altamente. Parece que não, mas ver uma mulher em palco tem algum impacto. E isso se calhar tem mais impacto para mim do que para ele. Agora, o que é que isso significa em termos reais no dia a dia? Nada. Só espero que daqui a 20 anos quando fizerem um livro sobre o garage do Porto se lembrem de nós. Só isso [risos].

Sunflowers em 2019 com Renato Cabral
Sunflowers em 2019 por Renato Cabral
Acho que a segunda parte da década musical no Porto é muito marcada pela história d’O Cão da Garagem.

[Carolina] Se me disserem ao menos que isto que fizemos teve algum impacto em alguma coisa, já não me sinto tão mal porque parece que já fiz alguma coisa com significado. Nem que afete uma pessoa só, já teve algum impacto. É uma coisa que me agrada bastante. Ele é mais humilde [risos].

[Carlos] E desatento, se calhar.

[Carolina] Mas é fixe. Muita gente mandava-nos mensagens com coisas para ouvirmos. Mike Vhiles, por exemplo, mandaram-nos mensagem para ver se queríamos ouvir as cenas deles e ver o que achávamos. Quando O Cão bombava mais, recebíamos muitas cenas.

[Carlos] Ainda recebemos muitos emails por causa da editora.

[Carolina] É a malta de há alguns anos que não atualizou a lista de emails [risos].

[Carlos] E descobrimos cenas fixes assim, para ser honesto. Mas também descobrimos muita coisa má [risos].

Como olham para o cenário musical do Porto no pós-pandemia?

[Carolina] Sinceramente, tenho estado um bocado fora, porque o último ano foi algo complicado para mim. Saí de onde estava a trabalhar, passei uns meses um bocado maus e tenho estado algo distante disso tudo. Agora o que conheço? Há coisas novas a aparecer e há bares que estão a existir que não existiam antes. Ele está mais atento à cena porque grava bandas.

[Carlos] Acho que, apesar de tudo, está a crescer cada vez mais e em vários estilos, que era algo que antes não reparava porque se calhar estava mais desatento. Quando estávamos a começar, estava mais atento às bandas de rock.

[Carolina] É interessante, também, que nos últimos anos tenhamos trabalhado num contexto mais de estúdio profissional e conheçamos os grandes nomes do circuito, que estão há 20 anos nisto. E uma pessoa acaba por perceber que o circuito mais “profissional” funciona muito como o circuito independente. Foi uma experiência boa essa porque deu para variarmos um bocado e sairmos da mentalidade DIY que tivemos sempre e começamos a perceber como se fazia a sério.

[Carlos] Mas temos tido muitas bandas a aparecer. Não só no Porto, cidade, mas na zona do Porto e distrito. E acho que sinceramente vão começar a aparecer mais, ainda para mais com a facilidade que agora se tem em fazer música, seja num contexto de banda ou contexto de produção. É normal que apareçam mais coisas, mas se são boas, só o tempo dirá.

Mas apesar disso que dizes, sinto que as bandas que aparecem muitas vezes são em torno de projetos individuais. E o próprio ecossistema do Porto, com o desaparecimento de estúdios para ensaiar e gravar, de salas para tocar, e o preço das rendas…

[Carlos] Claro. Eu conheço algumas bandas que só gravam, basicamente. Não ensaiam. Cada um grava em sua própria casa, mandam as partes uns aos outros e acabam a compor assim. E depois alugam uma sala para ensaiarem durante uma ou duas semanas antes de irem tocar. Mas qualquer pessoa com uma interface de áudio consegue fazer música agora. Agora se vai ser bom ou mau, é como te disse, só o tempo dirá. Eu sou bastante fã de música má, mas é uma cena-

[Carolina] Ele tem uma playlist muito boa só de música má.

[Carlos] Sou muito fascinado por pessoas que cantam mal e fazem “má” música. Acho que a música má está dividida entre várias categorias. Há as pessoas mais inocentes que dão o máximo que conseguem e sai assim. Há outras pessoas que simplesmente fazem música horrível e nojenta. E há outras pessoas que fazem de propósito para fazerem música má. Eu consigo arranjar diversão nisso tudo. Por acaso, no Porto, não conheço ninguém que faça música horrível, horrível.

Propositadamente horrível?

[Carlos] Sim, mas deve existir alguém. A Favela Discos tem algumas cenas feitas pelo shock value, que também é engraçado. A música má pode ser má por causa da pessoa que está a cantar, da composição, da maneira como gravam. Há músicas excelentes que estão gravadas e aquilo está distorcido ao ponto de não se ouvir nada. Consigo achar piada a isso, mas a Carolina não consegue, por exemplo. Eu tenho playlists de música que ela não consegue ouvir.

Como surgiu a vossa relação com a Stolen Body Records e com a Only Lovers Records?

[Carolina] Mais uma vez, a Only Lovers é daquelas histórias [risos]… O gajo [Judicaël Dacosta] veio ao Porto-

[Carlos] Ele tem família portuguesa.

[Carolina] Ele estava cá de férias e foi à procura no Bandcamp de bandas locais e encontrou-nos. Na altura, tínhamos acabado de lançar o primeiro álbum e ele mandou-nos um email a dizer que tinha curtido tanto que ia criar uma editora em França para nos lançar.

[Carlos] No início, achávamos que era spam [risos].

[Carolina] Mas não. Era um gajo a sério com contactos e ele criou essa editora para nos lançar e agora têm muitos mais lançamentos. A Only Lovers aconteceu assim. A Stolen Body foi por tua causa, não foi?

[Carlos] Sim. Eu estava aqui a trabalhar num bar aqui no Porto que só passava música em disco e o mano da Stolen Body, o Alex [Studer], estava cá de férias – porque ele é casado com uma rapariga cá do Porto – e veio a esse bar. E eu já não me lembro se estava a passar Useless Eaters ou Demon’s Claws, mas ele veio perguntar sobre a música que estava a passar, e ficamos ali à conversa. Ele disse que tinha uma editora, eu disse que tinha uma banda, e a relação criou-se assim.

Não sei se esse tipo de situações ainda acontece hoje [risos].

[Carlos] Acho que ainda acontece.

[Carolina] Acho que na verdade a maior parte das cenas acontecem assim. A indústria da música faz-se nos copos [risos].

[Carlos] Se calhar, se fosse uma cena em que mandávamos um email à Stolen Body, ele nunca iria abrir aquilo.

Alguma vez alguém pagou os 1000€ pela “Last Night I Saved Her From Vampires”?

[Carlos] [Risos] Infelizmente, não. E depois há um problema. Nós apagámos essa música do Bandcamp e nunca mais encontrei essa gravação. Queríamos lançar essa faixa na compilação que vamos colocar cá fora em breve. Vamos ter de utilizar uma gravação que está um bocadinho pior. Mas está-se bem [risos].

[Carolina] E nunca ninguém descobriu a cassete que tinha o prémio [risos].

Um prémio?

[Carolina] Quando lançamos o Castle Spell, havia uma cassete que era dourada. Quem a encontrasse, ganhava um prémio. Não vamos revelar o que é porque só quem encontrasse isso é que sabia o que era.

[Carlos] Nunca ninguém vai encontrar [risos].

[Carolina] Eu desconfio que alguém comprou para ter a cassete em casa, mas nunca a abriu e não faz ideia nenhuma disto. Porque eram 100 cassetes em que 99 eram pretas e uma era dourada com um papel especial lá dentro.

A pessoa não sabia que tinha comprado a dourada então?

[Carolina] Não, não. A capa era igual em todas.

E nunca ninguém reclamou o prémio?

[Carolina] Com muita pena nossa.

Ainda têm o prémio?

[Carlos] Acho que sim. Era uma escolha entre duas ou três coisas.

Como acabaram a tocar no Sumol Summer Fest de 2017? Parece-me mesmo aleatório.

[Carolina] Foi o Modas [risos]. Foi das coisas mais bem pagas que tivemos.

[Carlos] Foi muito bom esse concerto.

Tocaram onde no festival?

[Carolina] No Skate Park. O concerto foi cagativo, mas depois ficamos a ver o Sean Paul a entrar em palco e foi grande cena.

[Carlos] E estivemos com o Deejay Telio também.

[Carolina] Tirámos fotos com ele. Foi grande experiência.

[Carlos] Eu não tirei foto com ele. Vocês tiraram foto com ele quando fui à casa de banho.

[Carolina] A sério? Não me lembro disso.

[Carlos] Sim. Eu lembro-me de comentar: “Então, não esperaram por mim?”. Na altura, até trocámos email com ele porque-

[Carolina] O Rui [baterista e vocalista dos 800 Gondomar] estava obcecado na altura com o Deejay Telio e queria muito falar com ele. Ele trocou emails com ele, mas não chegou a acontecer nada.

[Carlos] Havia a ideia parva do Deejay Telio ser vocalista e nós a backing band [risos].

Um remix do Deejay Telio de uma faixa vossa era algo incrível para a tal compilação [risos].

[Carlos] [Risos] Era muito bom.

Essa compilação que está para breve vai incluir o quê?

[Carolina] Gravações de telemóvel [risos].

[Carlos] E não só.

[Carolina] Demos e músicas que ficaram guardadas que nós nem sabemos porquê.

[Carlos] Que nunca saíram. Basicamente, um monte de outtakes dos discos.

[Carolina] Tipo, a primeira vez que tocámos a “Zombie”. Cenas desse género.

Essa compilação encerra de certa forma um capítulo para a próxima fase da banda?

[Carolina] Esperemos que sim.

[Carlos] A próxima fase também já está quase feita.

[Carolina] Estivemos a gravar este verão também.

[Carlos] Acho que estamos a limpar a casa. Nós temos muitas coisas e, principalmente eu, tenho muita coisa no computador que está a entupir aquilo. Quero apagar os projetos, deixar as músicas gravadas. Se colocar no Bandcamp, fica lá guardado e não fica a ocupar espaço no meu computador. É um bocado isso que estamos a tentar fazer aqui. É levantarmos o véu de como fazíamos antes música. Agora, se calhar, já não fazemos como fazíamos na altura, mas temos muitas cenas engraçadas. Ouvimos algumas e ficamos seriamente a perguntar-nos: porque é que não pegamos naquilo? Podem ter uma qualidade de merda, mas é o que é. Acho que pode mesmo servir para fechar um capítulo.

[Carolina] É em jeito de comemoração. Continuo a achar que não devia contar dez anos porque a pandemia não conta, mas ninguém concorda comigo [risos].

Os Sunflowers celebram dez anos de existência com um concerto na Socorro, no Porto, a 26 de outubro. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.

Fotografia de destaque: Valéria Martins

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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