“Sinto que quanto mais tempo se passa, menos as pessoas ouvem aquilo que estou a fazer”, confessa Francisco Pedro Oliveira, a partir do seu estúdio, no Porto. Está a recordar os projetos que marcaram o começo do seu percurso musical. O problema, refere, intensifica-se quando, seis meses após o lançamento de Bolborinho, o primeiro álbum do artista multidisciplinar português a solo em seis anos, se verifica uma crescente redução do espaço crítico nos meios de comunicação portugueses.
“A escrita sobre cultura é cada vez mais reduzida, o espaço crítico está cada vez mais pequeno, e a música está atrás do teatro e do cinema em termos de espaço crítico”, opina o músico sediado no Porto em entrevista. “Foi um choque de realidade ter percebido isso”. O testemunho vem no seguimento de um desabafo partilhado pelo artista — que opera nas margens do som, da performance e da instalação – na sua página pessoal de Instagram, onde procurava compreender, com recurso a testemunhos recolhidos nessa plataforma, o que terá acontecido à crítica e ao jornalismo musical no pós-pandemia.
“De facto, aquilo que não era quase nada, agora é infinitamente menos”, afirma, enquanto reflete sobre os fatores que determinam o que pode ou não chegar à superfície. “Acho que há assessores de imprensa que têm mais poder do que outros, e sinto que a própria abertura que uns e outros têm dita muito sobre as chances que são dadas a determinadas coisas”.
Foram vários os acontecimentos que influenciaram o mais recente trabalho de Francisco Pedro Oliveira: uma crise existencial e criativa, a morte de um familiar próximo. Concebido em contexto de residência, no órgão da Sé Catedral de Lamego, Bolborinho foi apresentado pela primeira vez no Museu de Lamego, a convite do ZigurFest, que acolheu nesse espaço uma instalação sonora multicanal inspirada na figura de Nossa Senhora do Ó. “A matriz [do projeto] era fechada, mas as variações eram sempre diferentes, aleatórias e regenerativas, através dessas gravações que eu obtive”, explica sobre a peça apresentada originalmente em 2021.
O “bolborinho” que Oliveira invoca nesse trabalho é também o nome dado pelos habitantes da Beira-Alta aos remoinhos de vento. Segundo o etnólogo José Leite Vasconcellos na antologia Tradições Populares Portuguesas (1882), essencial para a definição conceptual do disco, o bolborinho (ou borborinho) é a manifestação do “diabo, das bruxas ou de algo maligno que está no ar”. “Há uma poética inacreditável na cena de se atirar uma navalha aberta para um redemoinho”, diz o artista, referindo-se a um dos excertos que acompanham as notas do lançamento no Bandcamp. “Para já, há aquela noção de perigo – a tentação de que [a lâmina] pode voltar para trás. Depois há toda essa mitologia criada à volta dessa ação que eu acho muito bonita e poética”.
As sete composições que compõem agora o disco, editado pela Fera Felina nos metros finais de dezembro de 2023, são o resultado de um “intenso” processo de exploração do órgão e “das suas fraquezas e fragilidades mecânicas”. “De repente, há assim um paralelo que se pode fazer com o piano de ‘On The Act Of Reminding’, neste interesse grande pelos objetos e pelas suas contingências materiais e físicas, e a forma como elas são completamente determinantes naquilo que é a minha música”, explica Oliveira.
O álbum, que esteve algum tempo em gestação na gaveta, foi pautado por um longo período de dúvidas e incertezas. “Tive muito tempo a debater com aquilo e a perceber o sentido que fazia”, explica sobre esse período conturbado. “Havia uma grande indefinição na minha cabeça e na minha vida para tentar resolver as coisas”. Um encontro transformador com Carl Stone, compositor norte-americano que brindou o nosso país com duas atuações no Porto e em Lisboa em 2023, a propósito do seu 70º aniversário, foi crucial na organização dessas mesmas ideias. “Ele ajudou-me a perceber que por vezes é bom largar as coisas em alturas que podem não fazer muito sentido para nós, porque dão outras leituras”.
Em Bolborinho, o ar é o elemento comum que liga todo este universo: ao sopro do órgão de tubos que jaz na Sé de Lamego, ao vento ameaçador que projeta a navalha em direção ao desconhecido, ao primeiro folgo da nascença. O luto provocado por um ente querido, de um lado, e a renovação da vida (a figura da Nossa Senhora do Ó) do outro. Estas e outras questões (a auto-descoberta, o reencontro com o que é primordial) alimentam uma obra enraizada nas relações seculares do vento com a tradição e a mitologia popular, presente em seis composições expansivas que vão muito além de um mero exercício de repetição paciente, combinando samples e gravações de campo com os reparadores movimentos de ar que saem dos tubos do órgão.
Um músico multidisciplinar
Traçar o perfil de Oliveira não é tarefa fácil. Além de músico e compositor, opera atualmente como investigador (de som e de sistemas incomuns), curador (de arte e de música ao vivo) e formador ocasional. No Porto, cidade onde reside desde 2015, estudou Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes. Especializou-se em Multimédia, com foco no som e na instalação, explorando outras áreas como o desenho, a pintura, a escultura e a fotografia pelo caminho. “Sempre me vi como uma pessoa que gostava de fazer muitas coisas”, admite. “Muitas coisas mal e nada bem o suficiente”, diz ainda, entre risos.
Nascido em Santa Maria da Feira, foi lá que desenvolveu o gosto pelo violino e pela dança, antes de descobrir a guitarra e não a voltar a largar. Mais tarde, fundou com Bernardo Costa os Deepbreathers, banda que operava entre as margens do rock progressivo e do pós-rock instrumental. EP1, a única coleção de músicas lançada pelo duo, foi gravado no quarto-estúdio de Costa, onde passaram várias madrugadas a escutar Durutti Column, Radiohead e Brian Eno, nomes que Oliveira guarda como formativos para o desenvolvimento da banda. “Foi muito importante para o meu crescimento como indivíduo, mais do que propriamente como músico”, recorda sobre esse projeto.
Paralelamente, entre as quatro paredes do seu estúdio, o músico começou a construir um mundo espectral de camadas, texturas e outros retalhos de recorte ambiental. On The Act of Reminding, álbum lançado em 2018, assinalou a estreia do músico em nome próprio. Gravado ao piano, em casa da sua avó, o disco combina avançados processos eletrónicos com as propriedades analógicas do instrumento, explorando as suas imperfeições. “Havia um conceito mais denso, que ia muito além de música”, relembra sobre o trabalho que, numa primeira instância, foi editado em cassete juntamente com uma caixa de sabão — um objeto único que acabaria por ser usado para uma cadeira de arte sonora, antes de se multiplicar nos 100 exemplares em vinil da primeira edição. “Acabei por usar este disco com esse intuito, de inaugurar um projeto editorial com a minha própria música”.
Assim nasceu a Fauve, editora que gere desde então com a parceira romântica e ilustradora Diana Lucena. “O formato físico é determinante para mim”, conta sobre a filosofia do projeto, entretanto batizado de Fera Felina. “Continuo a descobrir muita música sem usar um computador, continuo a ir às lojas ouvir discos que não conheço. Continuo a fazer isso porque sinto que há uma certa despoluição”, admite.
Foi no Porto também que Francisco Oliveira fundou os Terebentina, manifestação artística de onde brotaram músicos e artistas plásticos inspirados pelas correntes do expressionismo alemão (por via do Colectivo Bergado) e da no wave norte-americana. Em conversa, o músico recorda a “energia estéril” que se vivia na cidade do Porto antes da pandemia, e a urgência “contestatária” e “disruptiva” que levou à proliferação de outros projetos igualmente intempestivos (o primeiro concerto dos Terebentina decorreu no extinto Rés da Rua, a abrir para os conterrâneos Sereias).
Em 2019, integrou a exposição “Bergado & Terebentina”, povoando o espaço expositivo do Centro Cultural Vila Flor com um conjunto de happenings desenvolvidos com os elementos desse coletivo. “É muito pouco provável que a pintura que eu fazia naquele contexto volte a aparecer”, afirma, em retrospectiva, sobre essa experiência. “Era muito contextual, mas era completamente genuína ali”.
Amuletos e apotropias
Há locais que, pela sua natureza (cultural, social, económica), se tornam terreno fértil para a criação e proliferação de manifestações artísticas. No Porto, são muitas as que tentam espelhar o cinzentismo que carateriza as ruas da cidade. Foi essa energia “lúgubre”, essa “nuvem” que parece rodear o tecido cultural da Invicta, que Francisco Oliveira e Carlos Milhazes tentaram denunciar com a Branda, projeto curatorial que, explica Oliveira, surge da vontade de “desocultar uma espécie de neblina artística que está a acontecer no Porto”. “Queríamos montar um dispositivo que desse a ver certas coisas, que tentasse denunciar uma corrente”, conta ainda o artista, que admite a existência de “uma estética muito típica da cidade”.
“As coisas vivem de uma forma diferente por estarem no Porto, para o bem e para o mal”, diz ainda. “Eu sinto — e correndo o risco de estar a ser injusto com esta análise — que as coisas no Porto têm uma maturidade muito diferente das coisas que aparecem, por exemplo, em Lisboa ou noutros sítios”.
Com a saída dos Terebentina, ainda antes do lançamento de Um palmo acima do chão (Oliveira é creditado apenas com a pós-produção do álbum de 2022), surge a necessidade de preencher o vácuo deixado pela catarse coletiva desse grupo. Amuleto Apotropaico, duo que formou com António Feiteira, baterista na última formação dos Terebentina, foi a resposta para esse mal. Tal como acontece na Branda, há uma estética que o duo procura denunciar na música que pratica em palco, num jogo de opostos entre a tensão e a libertação, guitarrismo versus baterismo, qual ato de expiação em forma de ritual catártico. “Há uma espécie de vontade utópica que o projeto tem de romper com o tempo e o espaço”, diz Oliveira. “O projeto é bastante conceptual nesse sentido”.
Igualmente inspirado pela mitologia popular (o estudo dos amuletos, a apotropia) e pelo jazz espiritual (Sonny Sharrock foi um dos nomes mencionados pelo artista durante a conversa, mas na música do duo escutam-se ecos de Bill Orcutt, Harry Pussy e Chris Corsano), Amuleto Apotropaico é, na sua essência, o processo natural e orgânico de dois investigadores sonoros em busca da transcendência. Traduzir a energia do projeto “para fora da experiência do corpo presente” é um dos maiores desafios enfrentados pelo duo, que à data não possui qualquer material publicado. “É difícil ouvirmos e sentirmos estas questões do folclore, da espiritualidade e da apotropia fora da presença do corpo”, explica. “Está a ser muito difícil transcrever isso para um projeto gravado”, diz ainda o artista, que admite que a “natureza óbvia de gravar concertos e sacar um disco daí” está fora de questão.
Questionado sobre a nova vaga de revisionismos que assola a nova música portuguesa, o artista é claro e assertivo: nega qualquer tipo de associação ao movimento e critica o “saudosismo” e a “falta de propriedade” com que alguns dos seus agentes abordam a questão da tradição. “Acho que todo este neo-revisionismo do folclore vem de lados muito errados”, confessa. “Essa ideia de olhar para trás declara um óbito àquilo que aconteceu”.
Segundo o artista, a ideia de “tradição” implica uma gestão contínua dos costumes e da herança cultural que a precede. “Muitas destas reinterpretações”, explica, “são elas próprias de reinterpretações”. “Grupos folclóricos, como o rancho folclórico e outros grupos recreativos, são coisas já altamente ficcionadas e destruídas”, continua. Faz sentido, então, que o artista veja na documentação e na etnografia importantes ferramentas para a conservação de práticas antigas, estabelecendo pontos de ligação entre o presente e o passado. “Eu investigo estas questões de forma a encontrar respostas para a minha vida contemporânea”, explica. “A etnografia dá-me uma liberdade enorme de solucionar problemas”.
O desafio, conclui, passa por compreender – sem preconceitos nem desígnios saudosistas, e a partir de uma perspetiva antropológica – como as vidas de hoje não diferem assim tanto das do passado, procurando compreender o que resta “do presente desta relação”. “Acho importante assumir que estas preocupações que eu tenho por exemplo na música e na arte, no que toca ao folclore, não são coisas mortas. São preocupações reais e de hoje”.
Francisco Pedro Oliveira toca ao vivo numa matiné no próximo domingo (22) no Amparo99, no Porto, com ben yosei e Frost.y.