Chappell Roan cortou o mal pela raiz

Nunca foi tão escrutinado o papel de uma estrela pop ou de uma celebridade como nos tempos que correm. Enquanto estávamos demasiado ocupados a disfrutar ou refletir sobre o “BRAT summer”, outros fenómenos pop aconteciam. Neste verão, Charli XCX ensinou-nos que ser uma estrela pop também é ter defeitos, inseguranças e recaídas, Sabrina Carpenter indicou-nos que um  “Espresso” também é digno de carinho e, finalmente, Chappell Roan, apareceu do “nada” com a sua pop sáfica aguerrida para fazer estremecer os limites da fama. Quem é esta artista e como é que o seu tema “Good Luck, Babe!” chegou à alta rotação nas rádios nacionais? 

A personagem Chappell Roan nasceu em 2015 em Willard, uma pequena vila conservadora no Missouri, quando Kayleigh Rose Amstutz, jovem norte-americana de 17 anos que publicava os seus originais no Youtube, assinou contrato com a Atlantic Records e, mais tarde, lançou o seu primeiro EP School Nights. E não, nesta fase ainda não havia vestígios de glitter ou um estilo inspirado por drag queens (a ideia surgiria mais tarde inspirada pelo seu amigo Orville Peck). Em School Nights, escutamos apenas uma musicalidade semelhante a Pure Heroine de Lorde.

Quando assinou pela Atlantic, a jovem Kayleigh mudou-se para Los Angeles, onde conheceu o produtor Dan Nigro em 2018. Juntos, escreveram “Pink Pony Club”, (faria parte do seu afamado álbum The Rise and Fall of a Midwest Princess) que mostrou aquilo que o universo musical de Roan tinha para oferecer: hinos pop arrojados, devotos tanto a Kate Bush como Lady Gaga, mas com um toque relacionável bem presente. A faixa conta a história de uma jovem que deseja um dia sair da sua pequena vila e pisar os palcos de LA. Depois deste, vieram outros. Contudo, em 2020, tudo mudou. A indústria, sempre capaz de cuspir talento quando este não “vende” (os números! sempre os números!), fez de Roan a sua mais recente vítima. A Atlantic cancelou o contrato com Roan e esta tornou-se uma artista independente. Como se isso não bastasse, o seu longo relacionamento terminou. 2020 não foi um bom ano para ser Kayleigh Amstutz.

Impulsivamente, ou talvez alimentada pelo desapontamento, a jovem cantora regressou a Willard. Mas não desistiu. Voltou a Los Angeles no final de 2020 e, em conjunto com Nigro, construíram novas canções que fariam parte do seu longa-duração de estreia, The Rise and Fall of a Midwest Princess. É um álbum que funciona como uma coletânea de canções baseada na sua experiência em Los Angeles e no seu gay awakening. Um álbum que no início lhe valeu alguma notoriedade, mas não a suficiente. Apesar das críticas positivas, demoraria um ano para que Roan “explodisse”.

Já no início de 2024, Chappell Roan recebe um convite para fazer parte da Guts Tour como artista de abertura – convite esse que pode ter sido influenciado por Nigro, que, além de seu produtor, é o arquiteto por detrás dos premiados álbuns de Olivia Rodrigo, Sour (2021) e Guts (2023). Como muitos artigos indicam, Roan estava na hora certa e no sítio certo. Começava a sua ascensão.

Segundo um estudo feito pela Billboard, Chappell Roan iniciou a digressão com cerca de três milhões de streams. Os números de streaming podem não contar toda a história, mas Roan terminou a digressão com cerca de quase 15 milhões. Um crescimento astronómico até para a era da promoção do TikTok e da viralidade. Num piscar de olhos, a artista estava a pisar palcos como o Tiny Desk Concerts (que lhe deu notoriedade extra), Coachella (que lhe deu um acrescento em popularidade) e o Lollapalooza. Neste último, graças ao imprevisível número de fãs, a organização do festival foi “obrigada” a transferi-la para o palco principal, trocando-a com Kesha, apurou a Rolling Stone. E como se isto não bastasse, Chappell Roan lançou o seu estrondoso single “Good luck, Babe!”, que rebentou com a Internet em abril, logo após a sua performance no Coachella. Passado este verão, Chappell Roan já não é só um ídolo queer. Numa esfera pop estéril, os números indicam que é um autêntico “Femininomenon

A normalização do comportamento “super fã”

Os números aumentavam e os espetáculos esgotavam. Tudo indicava que Chappell Roan estava em plena ascensão. Porém, algo estava prestes a mudar. Em junho, durante a passagem da Midwest Princess Tour em Raleigh, entre lágrimas, a jovem cantora confessou que sentia que a sua carreira estava “a avançar demasiado rapidamente” e que era “muito difícil lidar com tudo o que estava a acontecer”. Em agosto, Chappell Roan confessou no Tiktok, em dois pequenos vídeos, o seu incómodo e repudio relativamente a alguns comportamentos abusivos por parte dos seus fãs. A mesma relatou vários episódios invasivos com que teve de lidar durante a ascensão na sua carreira, mas optou por expô-los através de perguntas retóricas direcionadas para os seus “super fãs”:

Se vissem uma mulher na rua, gritavam com ela pela janela do carro? Assediavam-na em público? Dirigiam-se a uma senhora qualquer e diziam-lhe: ‘Posso tirar uma fotografia consigo?’ E ela dizia: ‘Não, mas que raio?’ E depois zangavam-se com essa senhora ao acaso? (…) Perseguiam a família dela? (…) Tentariam dissecar a sua vida e intimidá-la online? Esta é uma senhora que não conhecem.

Pouco tempo depois, Roan fez um comunicado oficial na sua conta de Instagram onde abordou esta situação com o propósito de (tentar) estabelecer, duma vez por todas, os seus limites, para poder continuar a sua carreira. “Já participei em demasiadas interações físicas e sociais não consensuais e só tenho a dizer e lembrar que as mulheres não vos devem nada. Não admito qualquer tipo de assédio por ter escolhido este caminho, nem o mereço”, foi um dos primeiros pontos que desabafou.

A artista lembrou ainda a diferença entre o que faz em personagem e a sua vida pessoal, pedindo aos fãs que separassem esses dois mundos. “Quando estou no palco, quando estou a atuar, quando estou vestida de drag, estou a trabalhar. Em qualquer outra circunstância, não estou em modo de trabalho. Estou fora do horário de trabalho. Não concordo com a noção de que devo uma troca mútua de energia, tempo ou atenção a pessoas que não conheço, nas quais não confio ou que me assustam – só porque estão a expressar admiração”. Ainda na mesma publicação, Chappell Roan desconstrói a ideia do “super fã”, explicando que são apenas comportamentos abusivos e perversos que foram “normalizados devido à forma como as mulheres famosas foram tratadas no passado”.

Chappell Roan não está errada. O universo, o espaço seguro que pretendia criar, deixava de estar nas suas mãos. Esta não é a primeira, e não será a última, que a relação parassocial entre fãs e artistas se transforma numa relação ousada e sem limites. Veja-se o exemplo de Mitski, que após ter ficado viral no TikTok, viu os seus fãs terem comportamentos menos que ideais nos seus concertos. O próprio mais recente longa-duração de Taylor Swift, The Tortured Poets Department, parece ter a maior artista do mundo a dizer aos seus fãs para pararem de se meter na sua vida.

Com a idealização do artista, especialmente no mundo da música pop, os fãs desumanizam e materializam os músicos, supondo que os mesmos têm de se submeter ao que a fama, inevitavelmente, lhes pode trazer, ou como alguns dizem (uma frase com grande cheiro a mofo): “Se não era capaz de lidar com a fama, não se metesse nessa vida” – sinónimo de “estavas a pedi-las”, uma opinião que Chappell Roan não deixa de mencionar nos seus vídeos. “Esta situação é semelhante à ideia de que, se uma mulher usar uma saia curta e é assediada ou alvo de chamadas de atenção, não devia ter usado a saia curta. Não é dever da mulher aguentar e aceitar; é dever do assediador ser uma pessoa decente, deixá-la em paz e respeitar que ela pode usar o que quiser e ainda assim merecer paz neste mundo”. Seja físico ou verbal, a verdade é que esta é uma mentalidade vinculada com a cultura pop desde o seu primeiro momento. No entanto, Chappell Roan deseja cortar esse mal pela raiz: “Não me interessa que o abuso e o assédio, a perseguição, o que quer que seja, seja uma coisa normal para as pessoas que são famosas ou um pouco famosas ou o que quer que seja. Não me interessa que este tipo de comportamentos loucos venham com o trabalho, da área de carreira que escolhi – isso não o torna aceitável”, disse também numa das suas publicações. 

Depois de dez anos no “esquecimento” da indústria musical, Chappell Roan veio para ficar, e nós, como fãs, devemos apoiá-la. As ações de Roan foram urgentes e necessárias. Ocorrem numa altura em que as redes sociais, por um lado, geram utilizadores com menor paciência e empatia; por outro lado, parece que existe cada vez menos vontade por parte dum grande público de se exporem constantemente – artistas incluídos. Ryan Star, artista e cofundador da plataforma de áudio social Stationhead, numa entrevista à Billboard, disse que “as redes sociais tornaram-se tudo, e a música é quase secundária (…) Agora, de repente, temos uma hiperconexão entre fãs e artistas graças às redes sociais”. Não é à toa que Roan e outros artistas parecem ter desejos de serem menos conhecidos do que os números indicam.

Aparentemente, a receptividade à publicação de Chappell Roan foi bastante positiva. A artista confessou, numa entrevista à Entertaiment Tonight na gala dos VMAs (onde venceu o Prémio de Artista Revelação), que sente uma grande diferença agora quando vagueia publicamente na rua. Roan rematou dizendo que para ela foi fácil defender-se e que foi urgente fazê-lo. “Estou famosa há menos de um mês, não seria assim que iria continuar”, disse.

Seria injusto que a trajetória da carreira de Roan a obrigasse a deixar de ser ela mesma, especialmente quando se tornou “símbolo” para a comunidade LGBTQA+. Enquanto em jovem sonhava em ser como as suas referências, hoje Roan é também uma para todos os jovens que no fundo sabem que pertencem ao Pink Pony Club mas que não acreditam que podem sair das bolhas conservadoras onde se encontram. “Para todos os miúdos queer que me estão a ver do midwest, eu vejo-vos, compreendo-vos, porque sou uma de vocês. E nunca deixem que vos digam que não podem ser exatamente quem são”, finalizou. Todo este fascínio e carinho especial vai além das suas letras. Quando está em palco, um espaço onde reine a segurança e a liberdade são a sua prioridade, para que os seus fãs possam ser autenticamente eles próprios. Esperemos que a indústria não estrague isso.

Matilde Inês é uma pessoa que se emociona com os pequenos pormenores. É mais provável ouvimo-la a cantar as back vocals ou solos de guitarra, do que a letra principal. Recém licenciada em Ciências da Comunicação e que, atualmente, trabalha como radialista e jornalista na Rádio Voz de Alenquer. De vez em quando, escreve aqui e ali sobre música.
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Menos materialização, mais humanização.

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