Passa-se a linha de comboio e na mata se entra. Visuais escuros e diversos, cervejas e cigarros na mão, t-shirts de bandas vagueiam em contramão e conversas percorrem os diferentes caminhos que se cruzam em Âncora. Tendas, dos mais variados tamanhos e feitios, pintam os arvoredos da Praia da Duna dos Caldeirões para a edição de 2024 do Sonic Blast.
Muitas são as histórias que se ouvem a priori do que podemos encontrar nesta convenção de música grossa, onde o stoner é o que une os festivaleiros que há já 12 edições se concentram no limiar da fronteira com a Galiza. Mas, em boa verdade, não há palavras suficientes que preparem alguém que entre pela primeira vez neste habitat natural do barulho. O que por lá se vive, da ambiência ao espírito comunitário, à própria organização do modesto e acertado recinto, deixa-nos mal habituados. É difícil não romantizar o que ali se vive. Seja a passear pela reta que liga o campismo ao supermercado mais próximo, onde a festivalagem ocupa toda a calçada e a malta procura pelo ar condicionado mais próximo, seja a qualquer momento que olhamos para o manto humano que cobre a natureza minhota. Está tudo ali para o mesmo. Unidos para a diversão, convívio e abanar a cabeça ao som de barulhentos riffs – como a organização resume e muito bem a experiência no seu merchandising (“Beach & Riffs”).
Na calçada que nos leva ao recinto, de um lado, caravanas e carrinhas modificadas ocupam a berma. Do outro, encostados à cerca do campismo, temos artistas com a sua arte, cidra artesanal, artesanato em madeira, bolos muito especiais (se se quiser ser mais preciso, é só alterar uma vogal) e até mesmo performances musicais, tudo elaborado por festivaleiros que já se regem como parte essencial do festival. E foi nessa mesma calçada que os peregrinos do stoner, em tom de aquecimento, rumaram ao pre-day do Sonic Blast (7 de agosto).
Prelúdio – 7 de agosto
Apenas com o palco terciário a funcionar (ou melhor, o único palco secundário, tendo em conta que os outros dois se definem ambos como Palco Principal, 1 e 2), utilizado nos dias do festival para os concertos de abertura e de término, o dia anterior ao início oficial do Sonic Blast é aproveitado pelos festivaleiros para se ambientarem ao recinto e, pelo caminho, ouvirem alguma música. Uns migram para a banca de merchandising para comprar o vestuário e os acessórios ainda quentinhos – muitas peças já contavam com números prestes a esgotar mesmo antes do dia preparativo terminar. Outros adquiriram a mítica moeda sónica, isto é, os selos com os quais se pode adquirir cerveja – que este ano contavam com uma referência a Ozzy Osbourne – havendo ainda aqueles que optam por reservar forças e se deixam ficar pelo repouso do campismo, perdendo os concertos de BØW, Spitgod, Saint Karloff e ainda um DJ set de Branca Studio (os alemães Daily Thompson, agendados para abrir a noite, tiveram de cancelar o seu concerto devido a um acidente que afetou um dos membros da banda).
Princípio – 8 de agosto
Findado o aquecimento, avançava-se ansiosamente para o dia inaugural, que, sendo o único esgotado previamente, aliciava-se como o mais esperado do festival, muito devido aos cabeças de cartaz Viagra Boys. Mas até aos suecos do pós-punk dançável e narcótico pisarem o palco, ainda havia muita jarda sonora para ser ouvida. Com o vento acutilante da praia da Âncora a afugentar os campistas de volta ao acampamento, era tempo de meter comida no estômago antes de rumar ao recinto para as primeiras matinés. E havia razão para a deslocação madrugadora. O primeiro concerto de um dos palcos principais (neste caso, o 1) era também um dos mais aguardados do festival: a estreia em Portugal de uma das bandas de pós-punk britânico e ajazzalhado que mais tem dado que falar nos últimos tempos, os Maruja.
Sem os sopros em palco, devido a uma lesão nas costas do saxofonista Joseph Carroll, os britânicos apresentaram-se para “prosperar perante a adversidade e darmos um espetáculo independentemente disso”, como disse o vocalista e guitarrista Harry Wilkinson, antes da sua banda abrir o concerto com o malhão “The Invisible Man”. E foi mesmo isso que aconteceu: um grande espetáculo, independentemente disso. Conhecidos pela agressividade com que, por entre uma mistura de pós-punk, rebeldia jazzística e um spoken-word endiabrado, se libertam das opressões do status quo – como explicaram em entrevista ao Rimas e Batidas -, o circunstancial trio, composto também pelo baixo de Matt Buonaccorsi e a bateria de Jacob Hayes, deixou tudo em palco e deu uma das performances mais exemplares, em termos de aura e postura, de todo o festival. Claro que, para os fãs que esperavam ouvir ao vivo as cacofonias saxofónicas que tanto marcam e singularizam o som dos mancunianos, era muito difícil não ficar com o sentimento de que alguma coisa estava em falta. Porque, efetivamente, estava. Mas a devoção hercúlea dos músicos, com Wilkinson a debitar cada palavra como se a sua vida dependesse disso, através de uma linguagem corporal possante e uma cozinha muito bem polida devido à quimica musical entre Buonaccorsi e Hayes, bem como a forma como estes geriram a adversidade para tentar trazer o seu repertório à sua situação, não deixa de ser de louvar. A banda, cujo catálogo conta apenas com curtas-duração (dos quais se destacam os dois mais recentes,Connla’s Well e Knocknarea), teve ainda tempo para o improviso, tocar bangers como “Zeitgeist” e apresentar material novo. Resta imaginar como teria sido com o saxofone, mas para isso basta esperar até outubro. A banda já tem o regresso agendado para solo português, com três datas em Lisboa, Porto e Guimarães.
Os sucessores desse mesmo palco, ainda a navegar no calor ventoso que se fazia sentir a meio da tarde de quinta-feira, foram os também britânicos Margarita Witch Cult. A prata sonora da casa (o stoner, claro), chegou sob a forma deste metal doomesco e cantável, com psicadelismo e linhagem vintage à mistura, e conseguiu trazer divertidamente alguma raiva e amor aos festivaleiros, mesmo que jogando sempre muito pelas “regras” do género. A apresentar o seu disco homónimo, lançado em 2023, a banda de Birmingham ainda “brindou” a plateia com uma cover da música “White Wedding”, de Billy Idol. Despediram-se com o tema “Sacrifice”, antecedido de um “Fuck fascists, fuck anybody that says it’s not okay to drink a beer in 10 AM. We love rock’n’ roll. We fucking love you”, dito alegremente pelo vocalista Scott Vincent. Neste festival, essas afirmações fazem todo o sentido.
Com o relógio quase a chegar às 19, foi tempo de ir às boxes (campismo) para um jantar alancharado, sabendo que os concertos que se avizinhavam não iriam permitir grande tempo para tirar os olhos dos palcos. De regresso ao recinto, as atenções viraram-se para o palco da esquerda (o 2), onde pouco depois das 21 horas pisava a MÁQUINA., provavelmente o maior – ou mais mediático – nome português no cartaz deste ano do Sonic Blast.
Tal afirmação não pressupõe qualquer demérito para as restantes bandas portuguesas e talvez até seja de estranhar uma banda que apenas está em atividade há coisa de dois anos receber este tipo de cunho. Porém, o sucesso do trio lisboeta não é estranho para quem acompanha o cenário musical nacional. João (guitarra), Halison (bateria) e Tomás (baixo), que se encontravam a disfrutar do festival também como campistas, não têm dado grande descanso à sua máquina de dança, tocando um pouco por tudo o que é sítio em Portugal no último ano e meio. Com PRATA editado recentemente pela britânica Fuzz Club, o trio lisboeta chegou ao Sonic Blast com as suas engrenagens dançantes bem oleadas. Para muitos, se forem do norte e assíduos em concertos, já é trivial vê-los. Para outros, especialmente para os blasters estrangeiros, há uma novidade a explorar. De qualquer das formas, seja a primeira ou décima vez que se experiencia o maquinismo tech-kraut industrial, é notável que, de concerto para concerto, o carinho que o público lhes dê seja crescente (e estes dão de volta todo o carinho que recebem). Mesmo não tendo sido a performance mais explosiva e memorável que tenhamos visto por parte da MÁQUINA., esta não arredou o pé. Impulsionada por muita luz estroboscópica e uma plateia desejosa de se saciar de dança, tornou o Sonic Blast no seu club, levantando muito pó e arrebitando muito corpo saltitante.
Desligada a máquina, foi só deslizar para o lado direito para ver o penúltimo concerto da noite no palco principal. Pelo que se conseguia ver entre os surfistas de plateia e os mosh pits desenfreados, os Graveyard chegaram ao Sonic Blast para jardalhar o seu hard rock bluesificado e causar muito turbilhão nos festivaleiros. Fosse música calminha, fosse música munida a riff grosso e Rock com R grande, o público não queria muito saber se a prestação da banda merecia tal algazarra. Não que Joakim Nilsson e companhia estivessem aquém de muito do que se viu no festival, mas com certeza que a energia do público é que era o catalisador para elevar a temperatura do recinto, face ao morninho que vinha do palco. Ainda assim, os suecos, que percorreram os seus últimos quatro discos, deram um concerto bem competente, capaz de deixar satisfeitos muitos dos seus fãs, que tão orgulhosamente se faziam ouvir, e aqueceram bem a pista para os seus conterrâneos cabeças de cartaz.
Deu-se então uma pausa no barulho, com um slot de pouco menos de 1 hora sem concertos, mas a “enchente” para ver os grandes cabeças de cartaz já se fazia sentir no palco principal. Dois anos depois de terem pisado o palco secundário do festival vizinho (Vodafone Paredes de Coura), os Viagra Boys, que chegaram com o estatuto de grande chamariz da 12ª edição do Sonic Blast, entraram com tudo e o público também, tal foi o tsunami energético que ocorreu assim que se ouviram os primeiros acordes do banger “Ain’t Nice”. Sebastian Murphy, detentor de todo o seu carisma embriagado e grosseiro, imediatamente cumprimentou os festivaleiros, elogiando o país (cometendo a gralha de chamar Porto ao local) e declarando que ia tocar uma música sobre “ser uma espécie de semi-lerdo” – “Slow Learner”.
Face à última passagem dos suecos por Portugal, é inevitável assumir este concerto como superior. Não que a última tenha sido uma fraca performance de Murphy e companhia, mas há tanto fator adjacente que tornou a presença em Vila Praia de Âncora memorável; arriscamo-nos até a dizer que o concerto dos Viagra Boys no Sonic Blast foi facilmente um dos grandes concertos da temporada de festivais de verão de 2024. Não só estavam munidos de um dos grandes trunfos do Sonic Blast – o exemplar trabalho que estes fazem com a qualidade do som, contrastando com o sonicamente débil segundo palco de Coura -, como o próprio público proporcionou uma melhor experiência para aqueles que queriam ver mais de perto um dos nomes mais sonantes do punk atual. Em 2022, tinha havido muito cotovelo e pouca cantoria, e era notório que grande porção do público estava pela agressividade desmedida e algazarra bacoca. Em 2024, apesar de não ter sido um concerto pacífico, pois essa agressividade punk muitas vezes impulsionada pelos estados desinibidos e imprudentes dos festivaleiros mais substanciosos esteve presente, verificou-se uma grande diferença: havia muita cantoria em uníssono e amor para ser partilhado. Mais uma vez, estavam todos ali para o mesmo: viver a música ao máximo e livremente.
Com o público a cantar até as linhas de baixo como se se tratassem dos mais idiossincráticos cânticos desportivos, estes rapazes da sildenafila, que tocaram por mais de uma hora, não se ficaram apenas pelo seu Cave World – álbum mais bem recebido e popular da banda: percorreram toda a sua discografia, dando até bastante ênfase ao seu longa-duração de estreia, Street Worms, brindando os fãs com temas icónicos como a embriagada “Sports” ou a orelhuda “Just Like You”. Isto sem deixarem, claro, de parte a jarda de êxitos recentes como “Punk Rock Loser”, “Troglodyte” e “Ain’t No Thief”, entoados pela plateia como se de karaoke se tratasse. Navegaram também por deep cuts do seu mundo das cavernas, como o malhão dançante “ADD” – para grande felicidade aqui do vosso escriba. Pelo meio, o carismático Oskar Carls (saxofone) e o guitarrista Linus Hillborg, abandonados em palco pelos restantes, desataram numa jam de noise que certamente satisfez os fãs de Merzbow que andavam com t-shirts de Pulse Demon na plateia.
Ainda houve tempo para mostrar música nova sobre ser-se um idiota – alegadamente chamada “Man Made of Meat” – e de fechar o concerto com a mui-reconhecida nas lides musicais pelos vídeos que ressurgem regularmente de performances ao vivo, a malhona “Research Chemicals”, em que os blasters tentaram instaurar o recorde de mosh pit na variante de circle pit (e ainda tivemos a oportunidade de ver as nádegas de Sebastian Murphy). O punk manteve-se nos concertos restantes do dia – levados a cabo pelos Poison Ruïn e os Tons -, mas era tempo de recarregar energias para o dia seguinte e recolher à base.
Meio – 9 de agosto
O Sonic é um festival que não dorme. Deambulando pelo campismo, seja a que hora for da madrugada, há sempre vida a ser vivida. Vida detetada, em grande parte, pela audição, devido à falta de iluminação do recinto. O elemento fantasmagórico da coisa só a torna mais bonita. Realçam-se conversas, embelezadas pelos sotaques que as pintam. O que distingue o Sonic é mesmo não haver grande silêncio e ninguém se importar com isso. Porque, a todo o momento, conversas cruzam-se, histórias são contadas sob estrelas que se escapulam entre os arvoredos, por cima de música que, já com os PAs do recinto a repousar, é brotada de colunas portáteis e navega tudo o que é género.
Que não se pense que o que sonoriza as vivências é só música pesada. Claro que não. Apesar de ter o cunho de ser um festival de stoner, e de realmente ser o que por lá predomina, o Sonic Blast é, acima de tudo, um festival de música onde melómanos se unem para conviver e experienciar boa música. Apenas isso. Tudo o resto vem por acréscimo. Sinceramente, esse sentimento afasta o Sonic Blast dos mais mediáticos festivais de verão portugueses. E para quem acha que aqui não se descansa, que fique claro que uma sesta sónica é perigosíssima, pois nunca se sabe quanto ela irá durar. Na manhã seguinte, mais conversas, capazes de acordar aqueles que ainda tentam manter o olho fechado – para não falar dos barulhentos soundchecks. Ao sair da tenda, é tempo de nos dirigirmos ao banho que gelidamente nos deixa de olho aberto. Curioso também pensar que, apesar do número reduzido de chuveiros para todo o festival, foi raro (ou mesmo inexistente) haver filas…
O segundo dia do Sonic Blast, apesar de ser o mais fraco em termos de headliners, prometia muita consistência nos seus concertos e muito psicadelismo. Não foi surpresa quando se ouviu a notícia vespertina de que o festival se encontrava finalmente esgotado. Antes disso, a abrir as hostilidades do segundo dia do festival, os vizelenses Jesus The Snake, de orgulho botado em riffs psicadélicos e sintetizadores viajantes, aqueceram o público que tão bem se tentava arrefecer na sombra do palco terciário do festival ancorense. Este que os recebeu muito bem, dando uma grande ovação no final, onde até se entoou o nome da sua cidade. Em exclusivo à Playback depois do concerto, o baixista Rui Silva afirmou que era um gosto ir tocar “ao Sonic”: “É um festival onde já vimos como amigos há uns anos. Somos de uma terra pequenina, Vizela, onde não acontece muito em termos de concertos e sentíamo-nos um pouco deslocados. Foi mesmo o Sonic que abriu as portas para o mundo do rock e do stoner e estamos muito satisfeitos por tocar aqui”. A banda, que lançou em 2019 o seu álbum de estreia BLACK ACID, PINK RAIN, vai para estúdio no final do ano com o intuito de, no início de 2025, lançar o seu sucessor, contou-nos Rui.
Mantendo-nos ainda no mundo do psicadélico, de onde não tínhamos como fugir neste segundo dia de festival – nem haveria tal intenção -, foi tempo de peregrinar até ao palco secundário, onde se preparavam para atuar os portugueses Madmess. Com um verão recheadíssimo de quilómetros, a banda composta por Vasco Vasconcelos (baixo), Luis Moura (bateria) e Ricardo Sampaio (guitarra), também campistas no festival, pisaram pela primeira vez solo português desde o início da sua digressão europeia que passou por Espanha, França, Alemanha e Itália. Numa postura estilo velha guarda (sonora, porque a presença é jovem) e já com uma posta mirandesa no bucho, a banda estava focadíssima na missão de psicadelar rockisticamente. Apresentado o seu disco de estreia homónimo e o seu mais recente Rebirth – lançados em 2019 e 2021, respetivamente -, com os membros sempre de olho no instrumento – que não se retire esta frase de contexto, por favor -, os portuenses criaram um festival de headbanging na plateia Sónica. Nesse mesmo palco e seguindo muitos dos truques da banda que os antecedeu, com o sol ainda a fazer as malas para se despedir, os Sacri Monti vieram apresentar o seu mais recente disco, Retrieval, lançado no final de julho. Empoleirados pelos PAs dos dois palcos principais, a banda norte-americana deixou muito psicadelismo animado, melódico e pujante. Uma mistura de guitarras estridentes, que se arremessavam ao máximo com a ajuda da percussão – tudo isto enquanto se cantavam uns muito vívidos refrões.
Com o sol a caminhar para as dunas, os Causa Sui reivindicaram o stoner, juntando-o ao prato do dia (rock psicadélico) e fizeram brilhar a sua orelhuda fusão que mistura também jazz fusion, space rock e uma energia de jamanço robusto e bem afinado, de tal forma que até fez balões insufláveis sobrevoar a multidão de mão em mão. De visuais caleidoscópicos por trás, os dinamarqueses, que lançaram o seu 13º longa-duração em junho, From the Source, deram um dos concertos mais marcantes desta edição, levando os blasters sónicos a uma viagem calorosa de pouco mais de uma hora a bordo de faixas como “Red Valley” ou “El Fuego”. A abrir a sessão noturna desse mesmo palco, muito aplaudidos pelo público e ainda protegidos pelos visuais alucinogénicos que os perseguiam, munidos do seu stoner rock desconstruído e jazzístico, os alemães Colour Haze navegaram noite dentro com os festivaleiros que deliraravam com performances de canções como “Aquamaria” ou até mesmo a faixa final “Tempel”.
Chegando-nos mais para a esquerda, virados para o palco secundário e com o pé a fundo, os Truckfighters chegaram ao Sonic Blast com toda a voltagem e deixaram uma das performances mais eletrizantes desta edição. E lá lutadores são estes camiões, não só pela pujança dos seus riffs rítmicos, como pela presença que estes têm em palco. O guitarrista Niklas Källgren (também conhecido por Mr. Dango), vestido a rigor com calções de pugilismo e em tronco nu, foi um pleno saltitão, contando-se pelos dedos duma mão as vezes que este ficou parado. O seu colega vocalista e baixista Oskar Cedermalm, simpatizando sempre com as suas expressões faciais, convidava o público para se unir aos suecos com palmas e cânticos. Fecharam com “Desert Cruiser”, o público a cantar em uníssono e Dango a correr desalmado ao pé das grades. Se foi divertido? Foi. Se foi um grande concerto? Que não se exagere. Seria pejorativo chamá-los de André Rieu do stoner? Talvez, porque estes senhores até têm considerável jarda, mas com certeza que foi um simples concerto de rock n’ roll entretido com roupagem stoner.
Passando já quase 30 minutos das doze badaladas, foi tempo de receber os cabeças de cartaz 1000mods. Os gregos do stoner metal apimentado por psicadélicos (pois, claro) contavam com muito fã prontinho para um autêntico treino de cardio. As primeiras duas faixas aqueceram a multidão, mas foi “Road To Burn”, cantada a uma só voz, que levou ao abrir definitivo das hostilidades do público. Assim que abriram os mosh pits, não houve volta a dar e o epicentro parecia ficar cada vez maior, faixa após faixa, quebrando facilmente o recorde de circle pit instaurado no dia anterior. Em sentido contrário, houve uma ou outra instância em que eram abertos pits em fases finais de canções, despoletando aquele momento embaraçoso que só demonstra que a malta estava mais interessada na confusão do que propriamente em reagir àquilo que se passava no palco. E à semelhança do que foi visto com Graveyard, seria cruel dizer que os 1000mods ficaram aquém, especialmente quando entregaram jarda monumental em canções como a supracitada “Road To Burn” ou “Super Van Vacation”.
Fim – 10 de agosto
O terceiro dia começou como qualquer outro. Rodeado de, adivinhe-se… conversa, música e muito cântico entoado em uníssono por todo o campismo. “Júlio”, “Ganda massa Alex” ou “MÁQUINA” foram alguns dos temas mais populares – pelo menos numa das secções do campismo – que a este ponto já estavam mais do que ensaiados. De 15 em 15 minutos havia uma avalanche de palmas que percorria o mesmo caminho que o dos cânticos – muitas das vezes, sem razão explícita. Um jovem, que passara toda a noite a ouvir europop e Crazy Frog, à medida que gritava efusivamente de entusiasmo, estava miraculosamente ainda a incitar cânticos. E muitos festivaleiros começavam a acordar com os tenebrosos soundchecks.
A grande diferença relativamente aos dias anteriores era a leve tristeza por este ser o último dia de festival. Mesmo assim, esse sentimento não deixava abalar os festivaleiros que, apesar de já saudosos de terem todo um festival pela frente, ainda tinham muito para ver. E que melhor forma de começar o último dia nos palcos principais, senão com a performance mais singular, ou mais fora da norma sónica, da artista turca Gaye Su Akyol. Com os acompanhantes adornados de óculos que pareciam vindos do Regresso ao Futuro, a artista de Istambul, que cruza sons tradicionais da Anatólia com rock psicadélico, art pop e pitadas de eletrónica, convidou os metaleiros a uma viagem dançante e transcendente. O público, ao que parece, gostou. “Vurgunum Ama Acelesi Yok” levantou poeira e “İsyan Manifestosu” fechou o concerto com um mote que bem pode ser aplicado ao Sonic Blast, tocada em honra de “todos os amigos que ainda não conheci ao redor do mundo e que independente do género, identidade e cultura quero conhecer”.
No palco ao lado, depois da odisseia quasi-espacial de Gaye Su Akyol, foi tempo da viagem motorizada dos americanos The Obsessed. Apelando numa ou outra faixa aos seus fãs motoqueiros, em cavalinho e a todo gás, os veteranos abriram o segundo palco principal no último dia do festival. Tornando o Sonic Blast numa concentração motard, foi quase de mota que a fuga para o campismo foi feita, para podermos repousar. Nada contra a banda de Potomac, mas o seu doom metal não convenceu a que se gastasse a energia, pouca e preciosa, que seria tão bem utilizada mais tarde no concertaço dos franceses SLIFT. O trio de Toulouse, que navega nas lides do psicadélico pesado e do stoner, aprimorando tudo isso com uma temática e roupagem de space rock, trazia um dos concertos mais antecipados do último dia em Âncora. Ostentando-se com os visuais mais insanos de todo o festival, foi com muita cacofonia, pujança e barulho que nos apresentaram os seus últimos dois discos, ILLION, lançado este ano, e o seu break-through UMMON, lançado em 2020 e cuja faixa homónima foi o grande ponto alto do concerto dos franceses.
O concerto que se seguia era, para muitos, o mais esperado do festival. Em terra de stoner, Matt Pyke é santo (mesmo quando não o é). Não havia grandes dúvidas que grande parte dos festivaleiros estavam ali para ver os seus High on Fire, lendária banda do stoner e sludge metal. Apresentando o sólido e aventureiro novo álbum Cometh the Storm, os californianos não arredaram pé e deram o concerto mais barulhento de todo o festival. O público corria em círculos a tentar apanhar os BPMs dos malhões que estes chutavam sem dó nem piedade. Com uma frieza em palco digna de uma lenda do género, Pike, enraivecido a cada nota e a rugir como se cuspisse fogo a cada palavra que cantava, tinha a plateia na sua mão. Talvez a duração não tenha jogado em favor da banda, com o sentido de unidimensionalidade a ficar passado mais de uma hora de pujança sludge e gritos leónicos, sem grandes interrupções, desconstruções, ou invenções. Contudo, não deixa de ser recompensador ver ao vivo malhões como “Rumors of War” ou verificar que malhas do novo álbum, como por exemplo “Burning Down” e “Darker Fleece”, funcionam bem ao vivo. Afinal de contas, não é todos os dias que se vê lendas. O dia foi ainda marcado pela intensidade do hardcore atrashalhado dos Fugitive e por um dos últimos concertos de 2024 dos portugueses Cobrafuma, que entretanto anunciaram um breve hiato dos palcos.
Os dias a seguir aos festivais têm sempre uma tristeza atrelada. Ter de desfazer a tenda, à qual parece que nos habituamos de dia para dia. Ter de se despedir de pessoas, de espaços e de pequenas rotinas que criamos. Ir a um festival, no fundo, é um escape para a realidade. Sendo esta cada vez mais assustadora e instável, torna-se fácil tirar prazer destes tempos, em que a preocupação é alimentar, chegar a hora a concertos e estar completamente dopado em dopamina. Voltar ao mundo real, de certa forma, mete medo. Mas enquanto ali se está, a sensação de plenitude é irreplicável. Daí ser tão fácil para festivais construírem relações parassociais com os festivaleiros. Sabem o valor que estes têm nas suas vidas e, cada vez mais, agem perversamente relativamente a isso. Numa era em que os festivais de música se têm afastado da música, aproximando-se de algo mais parecido a um produto meramente comerciável do que propriamente a uma experiência de curadoria, é bom ir a um festival em que a música ainda é, aparentemente, o principal foco.
Claro que, como nada é perfeito, o Sonic não foge aos seus defeitos (ai, ai, esse preço da cerveja). As condições do campismo podiam ser um bocadinho mais arrojadas e o recinto podia ter mais espaço de lazer para poder descansar devido à sua platitude, só para mencionar algumas. Todavia, é fiel ao seu propósito: juntar melómanos, principalmente daqueles que gostem de riffalhada grossa, na natureza, para ver uma catrefada de concertos sem sobreposição de horários. Só isso é suficiente para nos deixar mal habituados. E lá isso ficamos, pois o Sonic deixa saudades mal voltamos a passar para o outro lado da linha de comboio.
O Sonic Blast regressa a Ancôra entre os dias 7 e 9 de agosto de 2025.
Fotografia de destaque: Iago Alonso