A primeira vez que vi a Maria Caetano Vilalobos foi na televisão no programa Bem-vindos da RTP África, acompanhada por Júlia Prado e Alice Neto de Sousa. Fazia pouco tempo que um poema desta última, chamado “Poeta”, tinha ficado viral pelas redes sociais. De repente a poesia tinha ganho espaço mediático durante aquelas semanas. O dia era 8 de março, data em que se assinala o Dia Internacional da Mulher, e Maria tinha sido convidada por Alice para ir ao programa onde esta era convidada regular. Maria declamou o poema que dois anos mais tarde a levaria ao estrelato com a aparição no Got Talent: “Sou Mulher”.
Vi-a a declamar pessoalmente passado pouco tempo na Poesia Vadia, evento/movimento organizado por Acílio Gala, naquele que foi também o período em que me comecei a aventurar pelo ecossistema dos eventos de poesia que se fazem em Lisboa. Nos dias de hoje, Maria Caetano Vilalobos tem andado pelo país a reboque do seu espetáculo que é também o nome do seu livro: Mulher Posso e Mando. Foi no passado dia 18 de julho que o vi nos recreios da Amadora. Num balcão antes da entrada na sala via-se merch de t-shirts e bonés com “Mulher, posso e mando” ou “Sou Mulher” escrito, mas não só. Viam-se também preservativos de graça, e era feito um concurso de copo menstrual para os espectadores. Bastava colocar o número do lugar numa taça. Quem saísse, levava um para casa.
Assumidamente feminista, Maria tem usado da sua palavra para falar dos temas sociais que lhe são mais urgentes. “Confiança Cosmética” é o nome do primeiro single que lançou com a ajuda de Jacaréu e Mista Sanches, e que corporiza o cruzamento do mundo da poesia com a música. Esta é uma simbiose que Maria ainda está a começar a experimentar, e que tem marcado os seus espetáculos. Foi sobre a forma como a poesia lhe entrou no seu caminho, como os eventos de poesia a moldaram e o feminismo nas suas palavras, que falei com ela para esta entrevista.
Quando é que foi a primeira vez que declamaste? Como foi e em que evento?
O primeiro evento em que declamei como adulta foi o Poemacto. Foi em 2020, um mês e meio mesmo antes da quarentena. O Poemacto na altura era no Hernani, que era um espaço no Cais do Sodré, e na verdade foi o primeiro Poemacto de todos. A Sol (Solange Pacífico) estava a procurar pessoas nas redes sociais, e alguém partilhou comigo essa story. Para mim, foi uma lufada de coragem porque há muitos anos que não partilhava a minha poesia em público a não ser protegida pelo teatro. Eu escrevo os meus próprios textos dramáticos já há algum tempo, às vezes punha poemas dentro, e partilhava nesse contexto de apresentação teatral. Mas desde a adolescência que não partilhava num evento específico de poesia. Eu aprendi a escrever poesia com o meu avô que escrevia fados, e fui sempre motivada pelos meus pais que também escrevem poesia e me estimularam muito a ler e a escrever com amor desde sempre. A primeira vez que partilhei a poesia era muito novinha, só que depois parei e na idade adulta só voltei assim à séria nesse Poemacto que era noutro lugar.
E já tinhas ido antes a outros eventos de poesia sem ser para declamar?
Nem sabia que existiam, mas há razão para isso. Eu vim viver para a Amadora em 2019, depois de acabar a minha tese de mestrado na ESMAE. Mas antes disso, vivi uma vida muito nómada em vários locais, como Montemor, Castelo Branco, Espanha, Évora. Antes de vir viver para a Amadora, já tinha vivido em Lisboa durante um ano, além de ter vivido também na capital os meus primeiros quatro anos de vida.
Depois do Poemacto, a que tipo de eventos é que passaste a ir, com que regularidade, e como é que foi essa viagem nos eventos de poesia?
A partir do Poemacto abriu-se uma caixa de Pandora. Foi um universo que se expandiu. Primeiro, por compreender que, se aqueles eventos existem, significa que, ao contrário do que eu achava por ter crescido em terras mais pequenas (em Montemor, Castelo Branco e até Évora) apesar do contexto académico em que participei, havia mais pessoas a curtir de poesia do que eu achava. Isso foi fixe de saber. Depois, há pessoas que têm uma paixão tão grande pela poesia que criam eventos. Compreendi que existia o Poemacto e logo a seguir percebi que existia a Poesia Vadia, a slam… eu desconhecia o que era a slam poetry, e que existia uma plataforma, o Portugal Slam, que era a mãe dos slams todos que existiam regionalmente. Num dia eu não sabia que existia nada, e no outro abre-se um universo de coisas e começo a seguir um monte de páginas através de pessoas com quem fui falando. E como passado um mês e meio começou o confinamento, de repente surge um fenómeno: todos os eventos de poesia se tornam mega acessíveis porque são todos online. A partir daí, comecei a ver os diretos dos eventos de poesia, participei num open mic de um deles, participei logo como convidada da Poesia Vadia, vi o Portugal Slam a acontecer online, e foi muito fixe porque de repente tive a oportunidade, apesar de estar em casa, de participar.
Como é que os próprios eventos acabaram por moldar a tua relação com a poesia? A relação com as pessoas que há nesses eventos, a inspiração da forma como os outros expressam a sua poesia, acabou também por desenvolver a forma como te expressas e foste desenvolvendo as tuas coisas?
Eu tenho guardado o vídeo da primeira vez que declamei poesia no Poemacto, e se eu for pegar no primeiro registo no meu primeiro evento de poesia e neste último, eu diria que influenciou inteiramente, porque eu já era atriz profissional, mas tremia, estava agarrada ao papel… Para mim, um evento de poesia era um lugar muito vulnerável, exposto. Não tem nada a ver com o estar em palco, é como se estivesse a aprender do zero a apresentar-me publicamente. Porque aí, a priori, estou a expor uma coisa não ficcional ou que até pode ser, mas que pressupõe pelo menos a dúvida de que parte daquilo é biográfico. A frase do poeta ser um bom fingidor é bonita, mas acho que nós quando ouvimos poesia ficamos sempre com o bichinho, ou pelo menos, eu fico. Isto tem um bocadinho da pessoa, né? É completamente diferente ouvir um monólogo ou ouvir um poema. Assim que eu vou ver pessoas a partilhar os seus poemas, sou abalroada por uma onda gigante de vulnerabilidade. Fosse biográfica ou ficcional, eu senti como se fosse biográfica. Para mim, foi uma nova forma de fazer que eu absorvi muito rápida e intensamente, e pensei: “Uau, isto faz todo o sentido”.
É um lugar muito mais de “casa”, ou seja… dá para jogar na mesma com esta divisão entre o que é que sou eu e o que é esta persona sobre a qual eu escrevo. Mas é tão mais íntimo, tão próximo, que ouvir as pessoas a exporem-se assim deu-me uma lufada grande de coragem. Acho que durante muito tempo parei de partilhar a minha poesia também por medo de falhar. A primeira coisa que senti no Poemacto é que havia espaço para falhar. O Beckett fala muito sobre isso, falhar mais e errar melhor, e eu senti esse lugar seguro.
Em termos de influência, posso dizer que a primeira vez que ouvi o Luís Perdigão a juntar poesia com canção em termos de slam poetry foi um momento chave. O poder fazê-lo, não porque é um cantor profissional, mas porque o poema pede. E ele canta bem, mas mais importante canta verdade. Posso estar aqui a enumerar mil coisas que me influenciaram. Ver a Marina Campanatti a fazer os ritmos com o corpo, ver o trabalho da Maria Giulia Pinheiro com a cadência, o ritmo e a melodia. Tudo isso me influenciou. Ver como é possível ir desde slam poetry, que é uma coisa muito mais de intervenção, grito, punho no ar, e depois ver Acílio Gala ou Solange Pacífico que são coisas mais gentis, mais doces, mais introspetivas, e que mesmo na não gentileza do que se diz há uma delicadeza no método.
Apesar de como atriz reconhecer todas estas emoções e cores com que podes pintar o discurso, ver todos estes modi operandi de partilhar vulnerabilidades e os pontos em comum, obviamente que me faz chegar a casa e pensar: “fogo, gostei bué disto, vou experimentar”. Então, criei este lugar de brincadeira, de poder absorver o mais possível, ouvir o mais possível, experimentar. Senti sempre como um lugar seguro para a inspiração, para o contágio, e é interessante porque acho que as pessoas reconhecem a minha estética, e obviamente que é uma fusão entre a minha bagagem teatral e gesticular e expressão corporal, mas é também um bocadinho de todas as pessoas por quem me cruzei. Isso, para mim, é a parte bonita dos eventos de poesia. O coletivo. Acho que é inspirador. E tu veres alguém a dar voz e palavras a um tema sobre o qual ainda não tinhas conseguido estruturar palavras e pensares: “opah, olha, vou para casa tentar”. E se calhar até é um poema que vai ficar na gaveta, mas é terapêutico. A primeira vez que vi que havia pessoas a escrever poemas inspirados no Sou Mulher senti-me buéda fixe.
Com a ‘Confiança Cosmética’, o teu primeiro single, materializaste conjuntamente com o Jacaréu e o Mista Sanches a junção da poesia com a música. Como foi o processo de entenderes que poderia fazer sentido adicionar a música ao espetáculo? Creio que também estás a desenvolver a forma como é que te relacionas com isso, mesmo no próprio espetáculo…
Sem dúvida. Isso envolve algumas partilhas um bocadinho assim da criança interior. Há 20 anos atrás, eu era completamente obcecada pelos Da Weasel. Escrevia muitos raps, e era muito dinamizadora no meu grupo de amigos de nós fazermos coreografias e cantarmos os raps que eu escrevia. Só que na minha cabeça, e isto é horrível mas real, eu escrevia para os rapazes dizerem, porque eu não sentia que havia grande espaço para as meninas. Até à Dama Bete, eu não sabia que eu podia fazer rap. Lembro-me de na transição da primária para o quinto ano perceber que, ya, podia estar ali a brincar, mas como profissão, só eles é que podiam. Desde cedo, quis cruzar a poesia com música, porque era inspirada primeiro pelos Da Weasel, e depois no Manel Cruz noutro registo que não tem nada a ver com o rap. Toda a música são poemas musicados, mas há uns que sentes mais a pulsão da palavra, e eu fui sempre atraída para projetos onde a palavra era protagonista, e que a música obviamente impulsionava. Tinha muito o sonho de juntar os dois universos. No quinto ano aprendi guitarra, depois no oitavo meti-me na escola de música, e tive sempre este gosto, mas sempre senti que por alguma razão não era para mim. O meu irmão mais velho estava a tocar baixo no dia em que foste ver o espetáculo. Ele toca bué instrumentos e sempre tocou muito bem, tinha montes de bandas. O meu irmão mais novo toca muito bem piano, e eu sempre senti que se calhar não era para mim. E não sei porque é que tive essa crença.
Quando era miúda, participava em concursos de karaoke e adorava cantar, e houve um momento da minha vida em que eu pensei: “ya, se calhar sou desafinada, se calhar sou arritmada, se calhar isto não é para mim”. E só ao ganhar coragem nos eventos de poesia é que percebi, com o Jacaréu, que da mesma forma que ele ganhou coragem para cantar e que me inspira a ganhar coragem para cantar, que o podia fazer, que podia materializar esse sonho. E confesso que os eventos de poesia me deram coragem para o mundo do teatro, ou do spoken word, ou deste cruzamento disciplinar que é este novo espetáculo, de arriscar e de ser fiel àquilo que eu sempre quis experimentar, porque a arte é o lugar para isso. Depois tudo começou com um duo musical, o Mbuki-Mvuki, que era o Miguel de Luna nas teclas e eu a declamar. Até fomos ao Maluco Beleza com esse projeto. Depois, o Jacaréu e eu fizemos um evento de poesia no Prisma com ele a improvisar na guitarra e eu a declamar. Foi assim baby steps nos eventos de poesia até que um dia pensei em experimentar isto no meu espetáculo. Tanto que aquilo que tu viste já é a versão 2.0, mas na 1.0 era só um músico por poema.
Este espetáculo está em constante mutação. Na verdade, todos os nossos espetáculos são assim. Não há dois iguais. Aquele momento do Rute Rocha Ferreira e do João Svayam, o meu irmão, de guitarra e baixo, com o poema do TPM [transtorno pré menstrual], nasceu no dia do espetáculo, porque para mim foi mais importante ser fiel à criação que aconteceu no ensaio e permitir ter esse espaço para uma coisa nova nascer do que fazer aquilo que estava pré-decidido. Foi o poema que eu mais me diverti a fazer no espetáculo, não só porque todos os poemas são a minha verdade ali, mas porque eu estou a tentar ser fiel à minha verdade artística, sem o pré-julgamento de não ser músico profissional. Tanto que, na verdade, de todos os músicos que passaram por este espetáculo, nenhum deles estudou música academicamente. É um acaso e, sinceramente, eu apercebi-me disso recentemente e pensei “isto é fixe assim”. São músicos incríveis na mesma e é fixe nós também descomplicarmos um bocadinho isto. Estou a explorar, a aprender… Tenho erros, mas já não acredito que sou arritmada, o que já é fixe.
Tenho vários instrumentos em casa mas ainda não toco nenhum muito bem. Portanto, esse lado ainda só está no conforto da minha casa. Tudo o resto, contudo, já vou conseguindo explorar. Sinto-me bastante feliz por isso, e por músicos incríveis alinharem na minha cena e conseguirem ver the big picture.
Como é que surgiu o espetáculo e o livro e como é que os dois se influenciaram?
O espetáculo nasceu primeiro numa residência artística com a Baal17 em Serpa, no distrito de Beja. Fui duas semanas e tal para lá. Cresci no Alentejo, portanto também é um ambiente que puxa muito à minha criatividade, e o objetivo era criar um projeto nessa residência a partir da premissa que era questionar a competição de género que existe na vida através do questionar do modelo de competição poética. A proposta inicial era brincar com este conceito de slam poetry e a subjetividade que ele acarreta. Ou seja, fazer um paralelismo entre competir com a tua poesia e o que significa competir na vida. O que significa competirmos umas com as outras? Porque nos é imposto? O que é que significa andarmos a competir com o outro género? Porquê, para quê, até quando? Chamava-se FemPoetry a proposta inicial e começava com “Slam Poetry é uma competição. FemPoetry não”. Ao longo do espetáculo, havia um crescendo. Primeiro, era a capella, depois era só ritmos, depois era ritmo e melodia, depois era loop na pedaleira. Eu tinha alguns instrumentos, pequenas percussões… Foi tudo muito experimental, mas a base era esta: questionar a competição.
Atenção, eu adoro as competições de slam poetry, mas acho que todos percebemos que qualquer competição artística é mega subjetiva, e tu tens que ir nesta perspetiva de brincadeira. Mas que brincadeira andamos nós a viver como sociedade e na vida? Era um bocado isto. Se eu aceito como verdade que cinco jurados escolhidos no dia aleatoriamente sabem quem é o melhor poeta da noite, eu consigo perceber que isso é absurdo. Então, que outras competições absurdas estão a acontecer na vida e eu estou a aceitar como verdade? Perdeu-se um bocado isso, acabei por largar a relação com a slam poetry, porque o espetáculo foi mais forte que eu, e os poemas que eu fui escrevendo e que foram surgindo ganharam uma outra forma, e quando comecei a criar o espetáculo em si, senti cada vez mais a necessidade de ter músicos comigo e de juntar o digital e o acústico. O que já está pré-gravado e o que está a acontecer no momento ao vivo, e jogar um bocado com isso em termos de estética. Porque, de repente, falar de slam poetry já não era tão urgente dentro dos poemas. Já não era só sobre competição. Era sobre tudo o resto e a urgência dos textos era outra. A narrativa tornou-se outra e acabou por cair mais num lugar de: como é que a poesia nasceu em mim mulher, e como é que eu agora uso a poesia para manifestar o que é que a mulher em mim tem por gritar? E isso acaba por ser o espelho do que é que isso representa em termos sociais. Falta de igualdade de género, a luta pela equidade de oportunidades, esta corrida constante para um lugar mais seguro e justo. Depois, juntei os poemas do espetáculo ao livro, mas havia muitos outros poemas que já existiam antes, ou que escrevi durante a residência e que não pus no espetáculo, que estão no livro e que não estão no espetáculo.
As questões feministas estão bastante presentes naquilo que tu fazes. Como é que foi o teu processo de entender a importância que isso teria naquilo que expressas, e no trabalho que fazes de uma forma geral?
Eu cresci em Montemor-o-Novo até aos 16, e depois fui para Castelo Branco. Nestes dois lugares, eu senti sempre, a partir da pré-adolescência, que estar em casa era uma realidade completamente diferente de estar na rua, ao contrário do que eu percebia que os meus amigos sentiam. Havia uma série de regras que eu tinha que cumprir. Coisas básicas como uma rapariga não se senta de pernas abertas. Incomodava-me como pré-adolescente, até porque eu sempre fui maria-rapaz. Usar esta expressão já é descabida, porque jogava à bola, porque usava cabelo curto, porque usava roupa de rapaz, whatever that means. Isso fazia-me um bocado de confusão. Porque é que eu era a “Maria Rapaz”? Depois, até se faziam piadas com isso e a minha alcunha já era Maria Rapaz porque eu sou Maria e parecia um rapaz. Porquê? E na verdade, passou de porquê para empoderador ser um dos rapazes. Já era um dos rapazes, ia jogar à bola, andava à porrada como um dos rapazes.
E há um momento na minha pré-adolescência em que eu percebo que não queria ser um dos rapazes. Queria ser eu. Não queria ter que me definir com base no grupo em que estava inserida, se estou com as raparigas como é que eu me adapto, me encaixo, porque é que eu tenho que me adaptar, me encaixar, porque é que eu não posso ser só… e comecei a ter montes de questões até de identidade de género. Há uma fase da minha vida em que até isso eu questionei bastante, e há aqui uma série de questões já impulsionadas. De repente entro na adolescência, e porque me dou com esses mesmos rapazes passo de Maria Rapaz para oferecida, e como cresci numa terra pequena montes de velhinhas e montes de gente diziam que eu era a namorada de todos. E é a primeira vez que me dizem: “Não andes só com rapazes, que ainda pareces puta”. E essa é a frase do Sou Mulher. A minha noção de realidade muda nessa frase, que é, espera aí, eu passei de ser um dos rapazes para ser oferecida só porque o meu corpo mudou e passei a ser um ser sexualizado? Porque vocês me sexualizaram quando eu ainda era virgem, não era sequer menstruada quando houve este confronto gigante em que algo mudou, é algo externo a mim, eu não participei nem decidi, e eu tive que me adaptar.
A partir daí isso tornou-se num tópico nas mesas de conversa, nos cafés, em casa, questões, perguntas, debates com professores… Não estava a conseguir encaixar, não me estava a conseguir integrar naquilo que era expectável de mim. Apanhei muitas professoras catequistas e isso não facilitou o meu processo. Não estou a dizer que todas as pessoas que são catequistas têm esta crença, mas eu não sou batizada, e ter crescido numa terra que se rege por isso não foi fácil. No curso de teatro obviamente que levantei algumas dessas questões, mas quando entrei no mestrado é que pensei: Qual é a temática da minha tese? É a temática da minha vida, é aquilo que me é mais urgente, é isto que eu vou trazer para palco. São relações heteronormativas, é a opressão que eu tenho sentido nelas, é aquilo que supuseram da minha identidade sem eu dizer sim… A partir daí nasceram uma série de espetáculos, saiu a trilogia “!REGRA GERAL, Nu Geral e Em Geral Não” que levantou questões diferentes como ser mulher numa relação heteronormativa, como pessoa queer que não está preparada para aceitar o amor como coisa ampla, fluída e justa para cada pessoa. Este “em geral não”, que ainda está em processo de criação, que nasceu na residência artística também em setembro do ano passado, já era educação sexual e emocional para jovens, já tem a minha posição como educadora, e já é um olhar mais externo e menos biográfico.
Mas quando me perguntam: escreves sempre sobre isto? Epah ya, enquanto me for urgente sim. Não escrevo só sobre isto, mas sem dúvida que desde o mestrado tornou-se muito claro para mim que tenho muito a dizer sobre este tema, porque o sinto muito como verdade. Tanto que o meu primeiro espetáculo nasceu dum monólogo biográfico sobre os números, e sou um bocado obcecada com percentagens e estatísticas da minha vida. Quando tu dizes que uma pessoa é oferecida, estás a fazê-lo baseada em probabilidades. Se ela se dá com 20 rapazes, há probabilidade de ela ter se envolvido com x por cento, mas na verdade ela esteve com x número de parceiros, e por acaso só aquela percentagem é que eram rapazes. Penso nisto… Se Maria fosse um gráfico ou um conjunto de gráficos, que Maria sairia numericamente? Mulher Posso e Mando nasce de um acumular de pesquisa e de procura e de questionamento que vem da minha existência não só da Maria artista, mas da Maria pessoa, que continuou a questionar.
Como foi a tua experiência no Got Talent?
A minha experiência no Got Talent foi incrível. Quando me chamaram fiquei logo super feliz, mas também super tensa, porque eu propus o Sou Mulher e foi isso que eles quiseram ver como primeiro poema. Esse poema causa impacto nas duas polaridades, e eu ia muito preparada para o que viesse dos dois lados. Foi muito surpreendente pela positiva porque eu recebi muito amor, muito mais amor do que ofensa ou violência verbal. Com os meus espetáculos anteriores, eu recebi muito mais violência online do que senti com estes poemas. Estava à espera que a essa escala eu tivesse que estar preparada, porque o meu primeiro espetáculo levantou muitas questões, e eu tive muitos atritos com a sociedade devido a ele, e com o Sou Mulher não senti isso. Claro que houve respostas e comentários desnecessários, houve partilhas e houve muita reação, mas tudo muito numa zona de respeito mesmo de quem não compreende, de questionamento, de debate, e muito amor. Muitas mulheres a dizer obrigada e que se identificavam, a partilhar as suas histórias e sei lá, isso era o objetivo principal: ir a uma plataforma com um grande alcance. Há um risco, mas há uma probabilidade de ganhos maiores. Há muitas mulheres que vão estar em casa, que vão ver isto e vão pensar “não sou só eu”.
Também fiz alguma pesquisa e alguns trabalhos em termos académicos sobre violência doméstica e abrigo de vítimas de violência doméstica em Évora. Para mim, foi muito chocante perceber que vítimas de violência doméstica vivem em quartos com famílias numerosas. Cinco, seis filhos num quarto com uma mãe só para não sofrerem abusos. Isso para mim foi muito chocante. Com as pandemias, os números escalaram imenso. Há mulheres presas em casa, sem saída, e quero muito que essas pessoas saibam que existe a possibilidade de se sair desse ciclo. Claro que as coisas não são tão fáceis nem tão inocentes como eu quero idealizá-las, mas se uma mulher ganhou coragem depois de ouvir o poema… valeu a pena. Toda a experiência teve muito impacto na minha visibilidade como profissional, e quanto mais visibilidade, mais eu posso fazer chegar aquilo que eu ando a dizer a mais gente, e tudo isso foram outcomes positivos em todos os sentidos.
O segundo poema d’O amor mudou foi um dos dois que tinha proposto. Teria tomado outras decisões se fosse hoje, mas de certa forma, ainda bem que disse aqueles dois poemas. Gostaria de ter dito outros também. Há pessoas que me disseram que fui falar mais do mesmo. Não, não é mais do mesmo. Assédio e violência sexual não é violência doméstica. E há muitas nuances dentro do mesmo tema. Claro que eu me questionei. Claro que podia ter levado uma coisa mais distinta. Até escrevi um poema sobre a solidão e a violência dos idosos por causa daquele comentário que o Manel Moura dos Santos fez, e é um tema que mexe comigo e que queria abordar também na minha escrita, mas não era de verdade o que eu sentia. Ia pisar um palco com uma visibilidade gigante e queria ser fiel à minha verdade. Tinha que usar aquele espaço para dizer o que me era mais urgente. Não queria dizer só o mais biográfico, queria também dizer o que era mais gritante, o que precisava mais de dizer. Por mim, tinha feito todo o espetáculo no Got Talent, mas deu um grande impulso ao meu trabalho e à mensagem que sem dúvida é a protagonista nisto tudo. E estou bastante grata porque fui muito respeitada e muito bem recebida pela produção.