O hip-hop nacional conheceu o seu primeiro grande boom para as massas na era 2004-2006, a reboque do inesgotável êxito de “Re-tratamento” dos Da Weasel (2004). É certo que antes já houvera momentos de pop à espreita no movimento, mas até ao “Olá, Nina /Quero tratar de ti” o hip-hop (e seus derivados) continuava entrincheirado na sua bolha de hino das juventudes. Os Da Weasel lideraram a revolução, mas não foram os seus únicos protagonistas. Desde 1999 que, em Leça da Palmeira (“terra mais bonita de Portugal”), New Max e Demo cozinhavam uma fusão de hip-hop com R&B, influências funk e reggae, e refrões orelhudos que Portugal ainda não tinha ouvido, mas iria adorar.
Os Expensive Soul precisaram de cinco anos até à derradeira estreia em formato longa-duração. De forma totalmente independente, a dupla lançou B.I. em 2004, numa tiragem limitada de 1000 cópias que ia vendendo aos amigos, por dez euros. “Quando dizes Oh” serviu de cartão de visita, rodando em várias estações de rádio dedicadas ao público mais jovem, mas foi “Eu Não Sei” que fez com que o fenómeno chegasse em força à MTV Portugal e, pouco tempo depois, à banda sonora dos Morangos com Açúcar. Nos verões que se seguiram, a música da dupla tornou-se obrigatória e praticamente inevitável.
B.I. é uma estreia absolutamente notável. Vinte anos depois, e apesar de alguns temas berrarem início do milénio, o álbum aguenta-se bem, sobretudo os singles “Eu Não Sei” e “Falas Disso”. “Como Eu Venho” mantém-se uma entrada quase perfeita para um trabalho que, acima de tudo, era polido e coeso. Para uma obra meio fincada no hip-hop, tinha uma produção a anos-luz de quase tudo o resto na altura: Rhodes e sintetizadores a ferver, linhas de baixo complexas e sempre bem marcadas, sopros de metal e uma percussão cheia de embalo e ritmos quebrados.
O disco não era fácil de catalogar. Em termos vocais, ainda não era totalmente clara a distinção entre o Demo que rima e o New Max que canta, e que marcaria o resto da carreira da dupla. Além disso, não obstante o peso do refrão cantado alavancado por New Max, é o rap que domina o álbum. Temas como “As Minhas Palavras”, “Salta, Salta”, “Dá-me o Groove” e “Tudo Começa no Guito” evocam uma certa matriz do hip-hop nacional da altura: “Salta, Salta” e “Quando dizes Oh” puxam à festa e colocam-nos ao lado do Boss AC entre o Rimar Contra a Maré (2002) e Ritmo, Amor e Palavras (2005), mas “Dá-me o Groove” apimenta um pouco a mescla R&B com que Gutto derretia corações (e outras partes do corpo). “Faz Esse” leva-nos a alguns ritmos de Podes Fugir Mas Não Te Podes Esconder (2001) dos Da Weasel, como “Ainda te lembras? (Tu Sabes Que Sim)”, mas contrariamente aos almadenses, que sempre puxaram ao rock, ao hardcore e ao nu metal, a música dos Expensive Soul vinha envolta em reggae, soul e funk. Em vez de chamar a vontade de moche, sabia a tardes preguiçosas, sal na pele e namoros de verão.
Esta dualidade colocava a dupla numa posição meio delicada: se, por um lado, eram demasiado rap para encaixarem nas listas mais comerciais, por outro, puristas do hip-hop resistiam à proposta açucarada dos nortenhos. De facto, B.I. foi o álbum mais rap da carreira dos Expensive Soul, e o único em que ouviríamos New Max nestes preparos. No entanto, as dúvidas em relação ao futuro da banda diluíram-se rapidamente nos anos seguintes porque, progressivamente, foram apurando a sua sonoridade pelos caminhos do R&B e da soul.
É tentador resumir o legado dos Expensive Soul à ubiquidade de “O Amor é Mágico” (2010), mas o impacto da estreia e dos primeiros anos dos Expensive Soul ainda hoje tem repercussões na indústria nacional. A dupla de Leça da Palmeira foi um dos primeiros fenómenos musicais em Portugal a construir muito do seu hype pela internet. Em 2004, circulavam MP3s das versões que não chegaram ao álbum (se alguém tiver aquele expensive_soul-sei_q_n_podias_ser_melhor.mp3, por favor avise, que eu preciso muito desse ficheiro). Este circuito de partilha foi fundamental para que a banda crescesse ainda antes de assinar com uma major. Em 2005, a EMI relançou o álbum, adicionando uma remistura de “Hoo Girl” com a participação de Virgul. Conforme explicaram ao Rimas & Batidas, os Expensive Soul nunca chegaram mesmo a assinar com a EMI: o acordo era um licenciamento de distribuição da sua música, garantindo a independência do grupo numa altura em que este tipo de acordos não era tão comum. Entretanto, a distribuição passou para as mãos da Altafonte, mas a dupla manteve-se detentora dos direitos das suas músicas.
O grupo também subiu a fasquia dos concertos. Ao lado da Jaguar Band, os Expensive Soul rapidamente se tornaram uma referência ao vivo, garantindo presenças nos maiores palcos da altura. Ainda em 2004, tocaram no primeiro MTV Live em Portugal (parte do Sapo Sound Bits); no ano seguinte tocaram no palco principal do Sudoeste, e em 2006, já com novo álbum, subiram ao Palco Mundo do Rock In Rio. Pouco a pouco, tornaram-se omnipresentes no circuito nacional de concertos. Quando a consagração comercial chegou em 2010, a parte mais dura do ajuste ao sucesso já estava feita, porque eles brilhavam tanto no estúdio como na estrada.
Ter uma banda em palco sempre foi um dos trunfos dos Expensive Soul, influenciando outros a fazer o mesmo. Em 2008, NBC adotaria Os Funks nos concertos do seu NBCioso (produzido precisamente por New Max), chegando a lançar em disco a gravação da apresentação no Instituto Franco Portugais. Poucos anos mais tarde, Richie Campbell ganharia tracção ao vivo tocando ao lado da 911 Band, apesar de se apresentar a solo nos discos. O que antes era estranho no hip-hop e outras expressões adjacentes, tornou-se a regra.
Sonicamente, os Expensive Soul encontraram réplicas cedo. Os seus conterrâneos Mundo Secreto serviram-se de uma fusão rap com refrões pop de festa (“Chegámos à Party”, “Põe a mão no ar”) para segurarem hinos posteriores dos Morangos com Açúcar. Também não é difícil apontar o decalque entre os Expensive Soul e os HMB, por exemplo, que beberam directamente da sua influência, estreando-se em 2012.
Foram também os Expensive Soul que deram a Dino a sua primeira oportunidade de gravar e cantar ao vivo, depois da sua participação na Operação Triunfo. Ainda longe de ser D’Santiago, Dino acompanhou os Expensive Soul por cerca de uma década – desde 2003, entrando no colectivo para substituir Marta Ren. A influência desses anos está plasmada na sua estreia em 2008, ao lado dos SoulMotion, mas transborda até hoje pela maneira intrépida como agarra a evolução do seu gosto e da sua criação, tal como os seus mentores.
Quando disseram “Eu não sei se vou ficar bem assim / eu só sei o que vai ser melhor para mim”, acertaram. A dupla sempre evitou tendências, recusando rótulos ou imposições que comprometessem a sua visão artística. 20 anos depois da estreia, a música dos Expensive Soul afastou-se do hip-hop há muito. No seu último LP, A Arte das Musas (2019), temos jazz, pop, funk e até yé-yé. Em B.I., encontramos um retrato da adolescência e a entrada na vida adulta de Demo e New Max – da boa vida adolescente em “Eu Não Sei”, às declarações de amor perdido em “Sei Que Não Podias Ser Melhor”, passando pelas ganzas em “Faz Esse” e uma espécie de primeira nostalgia em “O Tempo Passa”. Ouvindo trabalhos mais recentes, este início dos Expensive Soul parece saído do multiverso. Mas a pista do futuro que iriam desenhar para si, já lá estava. Escondida ao minuto 6:59 da última faixa, “I Just Wanna Know” é um paraíso delineado por Rhodes e pelo inconfundível falsete de New Max, numa rendição perfeita de R&B e neo-soul, que se liga com o que encontraremos na obra da dupla a partir daí. Em “Alma Cara” (2006), os Expensive Soul ainda ocuparam um espaço no diagrama de Venn entre hip-hop, R&B e soul, mas o primeiro já perdia terreno. Depois, aventuraram-se sempre, cruzando géneros e influências musicais de outros tempos e paisagens, sem ficarem barricados num ou noutro estilo. E ainda bem, porque é precisamente a permanente evolução da sua sonoridade que fez dos Expensive Soul uma das bandas mais importantes dos últimos vinte anos em Portugal.
Os Expensive Soul assinalam o seu 25º aniversário este ano com um concerto no Coliseu do Porto, a 11 de Outubro. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.