Os desabafos de zé menos e Pedro, O Mau em quatro partos

Nas últimas semanas, tenho pensado muito sobre cansaço, resiliência, resistência, burnout. Até quando serei capaz de fazer algo sem sentir que o retorno dessa ação é minimamente equivalente ao esforço?

Caso não tenham percebido, estou a falar da arte de ser escriba musical. Todos os dias são uma luta para continuar porque, independentemente da qualidade do output, é um desafio conseguir leitores e conseguir que o nosso trabalho seja reconhecido pelos nossos pares. Não que procurar estas coisas seja propriamente um ato consciente – não penso que seja –, mas sei que existe em mim uma necessidade de validação com aquilo que escrevo. Acho que foi o Steven Hyden (desculpem se estiver errado!), crítico norte-americano e uma das minhas principais referências literárias, que escreveu algo do género: parte da necessidade por detrás de se ser crítico é uma certa necessidade de se conseguir validar uma opinião perante um público. Sinto que parte da minha missão é essa; a outra é escrever para voltar a viver um sentimento ou memória.

Tenho pensado bastante sobre cansaço porque a luta para se fazer jornalismo independente em Portugal, sem se obedecer a lógicas de mercado, é francamente inglória. Não existe dinheiro a circular – ou o que existe é canalizado para pouquíssimos projetos –, é necessário um privilégio de classe, contactos, financeiro (e às vezes, todo este privilégio ao mesmo tempo) para se fazer isto e, acima de tudo, precisa-se de tempo que muitas vezes não se tem. Trabalha-se num 9-to-5 para se conseguir pagar as contas e tem-se uma vida social e pessoal para gerir. Vai-se para a terapia falar constantemente do assunto. Vê-se a mesma pessoa, branca, heteronormativa, a ser convidada para ir falar a uma conferência pelos mesmos de sempre. Tudo parece em vão. Tu e todos à tua volta estão “arrebentados”, como cantaram com toda a razão recentemente os 800 Gondomar. Quando dás por ti, estás a questionar seriamente: para quê continuar? Mas o bichinho não te deixa parar.

zé menos por Simão Costa
zé menos por Simão Costa

Estes pensamentos têm-me levado a escutar com atenção quatro partos, o mais recente curta-duração de zé menos. Na década passada, primeiro como Kap, e depois como zé menos, José Poças afirmou-se como uma das vozes mais singulares do hip-hop tuga. Como Kap, revelou-se como uma das maiores promessas do rap portuense: se o curta-duração Difícil de ser encontrado (2013) serviu como afirmação, o longa-duração Do Nada Nasce Tudo serviu como confirmação (2015). Kap era um dos nomes fortes duma cena musical que incluía nomes como Keso ou dB, mas entre 2015 e 2019, José Poças passou a apresentar-se como zé menos.  Para trás, ficou o boom bap que o revelou ao mundo, substituído pelas paisagens negras, densas e abstratas d’o chão do parque (2019), um dos melhores discos portugueses da década passada. O que une todos estes projetos? Uma caneta afiada com capacidade para transformar tormentas e inseguranças em poesia melancólica e frágil como vidro.

quatro partos marca um novo começo para zé menos. Primeiro, porque é o primeiro projeto do rapper nascido na Gaia que não foi produzido pelo próprio: Pedro, o Mau (ou seja, Pedro Carvalho aka VULTO) assumiu a produção das seis faixas do EP, todas elas interpretadas e escritas por zé menos. E segundo, porque é um projeto onde zé menos abraça, mais do que nunca, o seu lado de cantautor (escutar “canção de embalar”). Em quatro partos, nota-se a influência de cantautores de protesto como José Mário Branco (há já algum tempo que zé menos toca uma versão de “Inquietação” ao vivo), Fausto ou Zeca Afonso na obra de zé menos, enquanto a presença de Pedro, o Mau como responsável pelos instrumentais aproxima o rapper e cantor do universo dos ALMA ATA, projeto do qual Pedro, O Mau faz parte.

Há uma relação próxima entre as temáticas de o chão do parque e de quatro partos. Se em “gravidade” zé afirmava “Estou muito atrás de onde eu queria estar regularmente” e “Não consigo sentar-me a celebrar algo só suficiente”, em “quadrado azul, T vermelho”, canção que começou a tocar ao vivo em 2022, remata: “Ninguém me bate como eu me espanco”.

Não há maior crítico de zé menos do que ele próprio, e a exploração destas inseguranças surge como forma de levantar “outras questões pelo caminho”, como sugeriu em conversa com o Rimas e Batidas em 2019. Enquanto que em “mártir / 3 saídas” zé cantava “Sala vazias não aplaudem nem enchem egos / E há quem queira barrigas cheias do nada que nos pagam / Que a fome promova a arte eu entendo / Mas o contrário só faz com que ou te promovas ou vendas”, em “muito contra a minha vontade”, desabafo em estilo spoken-word, reflete sobre o impacto desse pensamento na sua psique: “Na minha bucketlist tenho / Fazer música / Ver amigos / Não me sentir tão alienígena / Até ao fim da vida / a deixar de me preocupar com o que não fiz / Já que esse é o peso com que se medem vidas”. Como sair deste loop?

No barulho de fundo de quatro partos, escuta-se a podridão da sociedade. As reflexões de zé neste EP não partem tanto do “eu” como acontecia em o chão do parque, mas sim da forma como o que nos rodeia nos remove o chão, nos desgasta. Em “arena”, fabulosa faixa que abre o curta-duração, zé reflete sobre o desvanecimento sobre os valores de Abril (“Grândola vila morena, Grândola vila sem cor”), como o sonho neoliberal se tornou doença (“Tudo quis ser um dono, ninguém quis ser jardineiro / E agora é raro o cravo que a estufa não educa”) e como todos os dias são uma luta para não cairmos para o lado de cansaço na luta pela sobrevivência (“Em cada esquina – um rosto cansado de não ter tempo / Em cada vida – um fosso escavado pra esconder medos”). Tudo isto, claro, enquanto tentamos arranjar tempo para nos expressarmos. Como fazer arte nestes termos e condições?

Temos cada vez menos tempo para exteriorizar sentimentos. Músicos, fora uns quantos privilegiados, são obrigados a terem empregos em áreas distantes do universo criativo para conseguirem pagar rendas e fazerem a sua arte. A indústria criativa é uma falácia. Não existem apoios públicos suficientes, não se valoriza na educação a vertente artística. Quando dás por isso, todos são engenheiros, mas não existe ninguém para fazer pontes com a realidade.

Os assombramentos existenciais de zé menos são expostos em quatro partos pela forma como a sua voz se imiscui nos instrumentais de Pedro, o Mau. Estas canções evoluem como pinceladas em quadros pintados de tons de preto e cinzento. Do nosso lado, fica a bola para tentarmos perceber onde está a esperança e o conforto para a dor. São cantigas lindas estas de quatro partos, mas são também dolorosas e cínicas.

Em “quadrado azul, T vermelho”, guitarras delicadas (tocadas por Tomaz, outro integrante dos ALMA ATA) e drums esparsos trabalham o espaço para que as vozes de zé menos (a par de T-Rex, zé menos é o rapper em Portugal mais criativo a trabalhar a voz em estúdio) sirvam como almofada para a insegurança. Na fantasmagórica “corpo que gira”, canção que lembra algum do trabalho que zé menos desenvolveu com Riça em Diabos m ’Elevem, as vozes transportam-nos em direção à conclusão maior de quatro partos: “Forças que escolham por mim / Trajetórias que eu orbito / Ser pensante não me serve / Sou só um corpo que gira”). Nos derradeiros momentos do EP, as vozes fazem regressar este sentimento: “Muito contra a minha vontade / Bucketlist”.

Aquilo que zé menos expõe em quatro partos é a ideia de que, para fazermos o que realmente gostamos, para sermos verdadeiramente livres – os “poetas à solta” que Agostinho da Silva tanto gostava de relembrar –, temos de nos arrebentar completamente, contra a nossa vontade, porque o sistema dominante – o capital, o neoliberalismo falacioso – assim nos controla. Estamos presos num loop de podridão onde somos empurrados para bloqueios mentais e criativos porque simplesmente não temos energia para mais (zé menos, por exemplo, demorou três anos a concluir este EP). A música que fazes não é escutada por pessoas suficientes porque o próprio ecossistema duma indústria que não existe está viciado em prol de apenas uns meros velhos sensaborões. Ninguém te lê, ninguém te escuta. O eco da tua voz não é devolvido. Tens um burnout. A tua vida fica borratada para sempre.

É complicado encontrar qualquer esperança que seja em quatro partos. Ela não surge da música, mas sim no alento que encontramos a perceber que não estamos só nestas dores e nesta luta. Servem de escape. Pintam um quadro demasiado real sobre tentar viver em prol de uma “sina” que parece inalcançável. Não é que o mundo tenha perdido totalmente a sua cor, mas todos os dias são uma luta para que este não se pinte apenas de cinzento. Com o hip-hop pós-moderno de quatro partos, zé menos faz a sua parte; nós devemos fazer a nossa ao escutá-lo com todo o carinho e atenção.

zé menos leva quatro partos a 16 de agosto ao Kulverão por Nespereira-Cinfães. A entrada é gratuita.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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Hip-hop pós-moderno para ser escutado com atenção.

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