Carte Blanche: Especial Variações

Escrever sobre o António é um desafio. Um desafio porque, simultaneamente, já foi escrito tudo e mais alguma coisa sobre a sua música e, mesmo assim, sempre parece pouco. 

A música do António é a encapsulação máxima do que é a música pop. É agregadora de tantos corações e lábios em uníssonos prontos a receber e cantar estas canções e sinónimo de profundas transformações na sociedade, um símbolo do que a pop feita em Portugal poderia ser. Sem medo de ir à raíz do que eram as tradições do país e sem o pretensiosismo de ignorar o que de mais interessante se faz lá fora. Na história da música portuguesa, nenhum outro artista espantou, impressionou e mudou tanto o jogo do que é possível ser a “música portuguesa” do que António Variações. Mais do que o nosso maior artista pop de sempre, mais do que alguém capaz de construir a hipotética ligação entre Braga e Nova Iorque, Variações é indubitavelmente a maior referência da cultura pop portuguesa contemporânea.

Por isso, a música de Variações continua a soar tão atual hoje como há 40 anos; foi  a 13 de junho de 1984, dia de Santo António, que o músico infelizmente deixou este mundo que pouco fez para o merecer.

Não sabemos o que o António acharia do mundo de hoje. Um mundo dividido, destruído, com pouca esperança. Mas será 2024 assim tão diferente de 1984? Guerra, doença, peste, fome. E no meio de toda a turbulência, música, canções, resistência a morais reaccionárias cujo mofo teimava em penetrar todas as camadas da sociedade.  

Felizmente, e apesar de Portugal continuar a ser um país conservador em várias vertentes, o nome de Variações regressou ao panteão da canção nacional. Voltou a unir pessoas e gerações. E nessa união, faz-nos querer ser melhor e, acima de tudo, sermos nós próprios – sem pudor. Em “Estou Além”, o maxi-single que o apresentou ao país, António cantou aquela que talvez seja a quadra mais forte de sempre da canção pop feita no nosso país:

Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P’ra outro lugar

 

Na música de Variações, condensa-se a relação entre margem e centro, entre pop e punk, entre as ansiedades e as alegrias de viver. Quando escutamos Variações, escutamos o que é efetivamente a vida.

– Miguel Rocha


Quando se fala de “favoritos” de António Variações, os seus grandes sucessos – aqueles que cantamos em alto e bom som, sozinhos ou acompanhados, para celebrar ou chorar – aparecem sem pedir licença como escolhas praticamente impossíveis de resistir. No entanto, e tentando –sem forçá-lo – fugir ao óbvio, a escolha honesta, neste momento, é a nobre e barroca “Canção”, que surge logo a seguir ao monumento “Canção de Engate” no alinhamento de Dar & Receber

Com direcção e produção musical de Carlos Maria Trindade e Pedro Ayres Magalhães (o lendário Paulino Vieira é outro dos nomes que também aparece creditado), o tema mostra em grande plano o intérprete Variações, que coloca toda a sua personalidade (sempre carregada de emoção) ao serviço de um poema de Fernando Pessoa. Parte de bandas como Corpo Diplomático e Heróis do Mar, a dupla Trindade e Ayres Magalhães compreendeu que a curta e rudimentar maquete tinha o potencial de se tornar muito mais, levando-a para uma outra dimensão, que é, como quem diz, para um imaginário magnificente que se alicerça na cadência rítmica com pés no folclore português e nas teclas vindas de um lugar imbuído de barroquismo. 

Não sei se é pela matéria extremamente samplável que aparece nos primeiros 20 segundos da música ou se é por encontrar alguns paralelismos com aquilo que artistas como a Bia Maria ou a Ana Lua Caiano estão fazer em 2024, mas esta “Canção” vai reaparecendo como uma improvável favorita da discografia do homem que fez a ligação directa entre Braga e Nova Iorque.

– Alexandre Ribeiro, label manager da Altafonte Portugal


António Variações seria, provavelmente, uma das pessoas que não teria qualquer interesse em responder à pavorosa questão: “Onde te vês daqui a 5 anos?” Pelo menos, é isso que o tema “Quero É Viver” indica. 

É uma canção que soa simultaneamente a algo melancólico e esperançoso; a uma vontade de chegar ao futuro enquanto ainda se habita um lugar de incerteza. No universo de “Quero É Viver” temos acesso a uma possibilidade de futuro sem expectativas do que lá possa acontecer, sem planos fixos, aberto a qualquer possibilidade. 

Há qualquer coisa de arrebatador nela. A letra tem sentimento de poema, que se alia à melodia e torna a canção em algo maior que ela própria. A dimensão comovente que a melodia e a letra atingem juntas não seria possível se alguma delas fosse diferente. Parece que foram feitas uma para a outra, e brotaram uma espécie de ode à vida.

Embora a versão dos Humanos seja fiel à emoção do universo sonoro de Variações, dele só conhecemos a maquete caseira. É também aí que reside o fascínio. É uma canção que não teve tempo para chegar a adulta, e que vai, para sempre, habitar a esfera do mistério.

– Filipa Pina, teclista e uma das vozes da banda Humana Taranja


A primeira vez que me lembro de ter ouvido a “Dar e receber” foi numa das minhas idas iniciais ao Lux, nos meus meros 18 anos… com uma amiga que estava a engatar moscow mules pra nós, a um beto rico. O Varela droppou este banger tuga desconhecido até então por mim (obrigado Varela adoro-te) e eu fico paralisado, para sempre transformado. A vida não é apenas dar e receber? Tão simples quanto isso. Hino gay. shoutout versáteis.

– gaydacinameteca, influencer e dinamizador cultural


A minha música preferida de António Variações sempre foi “Canção de Engate”. Começa logo de uma forma fantástica, depois da intro, com um encadeamento de acordes que parece mais de refrão que de estrofe. Entra com tudo o que tem, a pés juntos e sem nada a perder. A letra tem um tom deliciosamente argumentativo, enumerando as várias razões para que o seu interlocutor permaneça na sua companhia, num monólogo de matiz cada vez mais dramático, apelando ao sentimento de escassez, de desespero. É um quadro vivo: numa noite qualquer, um objetivo foi traçado e assistimos a uma cena de caça em que através da palavra repleta de sedução e de uma ponta de desprezo tão necessário para fazer baixar a guarda, alguém se deixa levar no arrebatamento sob pena de passar mais uma noite sozinho. 

Não sei quão à frente do seu tempo estará esta canção (em Portugal há registos bem antigos de cantigas que deturpam o sacrossanto amor romântico) mas no seu tempo este tema terá sido provavelmente dos mais arrojados neste campo. Acredito que ainda hoje tem o poder de nos fazer pensar nisto do amor de uma forma diferente daquela que a maioria dos produtos culturais nos habitua, sou suspeita pois também falo bastante na minha obra sobre o amor intermitente, ocasional, puramente enérgico e sexual como sendo dos mais maravilhosos que podemos viver. Mas a coragem com que António Variações cantou, já com a presa nas garras, que amor é o momento em que eu me dou e tu te dás, é revelador do seu papel disruptivo e de vanguarda na música portuguesa. Podia não ter dito nada, que o amor nestas condições, depois de conseguido e consumado, é pouco dado a palavras. Mas disse-o, a quem estava consigo e a todos nós, para que nos lembremos que não existe uma maneira certa de amar, e que o amor, mais do que o que uma troca performativa de favores, é uma vivência a dois (ou mais) onde o instante é rei e o que nos fica é o que sentimos e demos a sentir.

HADESSA, música e produtora


Neste mundo de “tanto” é difícil ou impossível escolher apenas “uma”. Será a primeira ou as primeiras que ouvi? Muitas mais vieram depois dessas. Desde mínima, e sem ter a percepção integral das letras, admirava todo aquele universo musical, as canções, as melodias, as palavras, aquilo que tirava delas, e todo o arco-íris tão iridescente e existente naquele corpo, naquela mente, naquele interior, naquele exterior. Hoje (e sempre) tiro prazeres diferentes de várias.

Ele não, não usa a força, usa uma luz com que ilumina a minha vida. Que viagem é essa? Que te diriges em todos os sentidos, andas em busca dos sonhos perdidos. Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar. Perdi a memória, turvou-se-me o pensamento. Não posso contar a minha história, perdi a razão do tempo. Quando a cabeça está nessa confusão, estás sem saber que hás-de fazer e ingeres tudo o que te vem à mão. Mas tu estás sempre ausente e não te conseguem alcançar. Vem que amor não é o tempo, nem é o tempo que o faz. A culpa não, não é do sol se o meu corpo se queimar, a culpa é da vontade que eu tenho de te abraçar. Ai tu bem sabes como o tempo foge, mas nada fazes para o agarrar. Deixa sofrer, deixa sofrer se isso te dá prazer. A interpretação é o que quiserem dar, não tenho jeito p’ra regatear. Também não sei se eu a quero aumentar. Porque eu não sei.

– Helena César, assessora de imprensa


A primeira vez que ouvi a “Rugas” tinha 11 anos, na voz da Manuela Azevedo e do Camané, na altura no belíssimo projeto Humanos. Esse sempre foi o meu poema preferido do António Variações, que me faz pensar muito sobre envelhecer e viver as marcas da vida. Canto-a e ouço-a muitas vezes, é uma canção de uma honestidade imensa que me comove sempre que a ouço. O António Variações será sempre uma das minhas referências de artistas/performers portugueses e à medida que conheço mais o seu legado, descubro que há sempre uma canção que ainda não ouvi. Ele tem esse poder: a sua obra está sempre a reinventar-se e encontro sempre uma atualidade nas suas palavras.

Inês Monstro, música, artista e produtora


“E eu sou melhor que nada”. Digo sempre que esta é a minha frase de engate preferida, dentro da minha canção de amor preferida. Não sei bem o que isso diz sobre mim, mas sei que o António Variações sabia muito bem falar sobre nós.

Não me lembro da primeira vez que ouvi a “Canção do Engate”, mas sei que não foi na versão original. Nada contra, mas a partir do momento em que se ouvem aqueles sintetizadores iniciais originais nunca mais dá para a ouvir de outra forma. Assim que começa, estou em casa, esteja em que noite estiver. É o arranque de quem sabe exatamente a importância de um primeiro olhar que atravessa a pista.

O amor é muita coisa, até a solidão que está lá dentro. Para mim, a “Canção do Engate” move-se nessa escuridão interior, dá-lhe luz, e deixa-a dançar.

– Marta Rocha, radialista da Antena 3


Numa atuação no Passeio dos Alegres em 1984, Variações canta “É pra amanhã” a usar um macacão de flanela estampado, com um cinto e mitenes roxas, enquanto segura num peluche cor-de-rosa, um outfit que como qualquer letra de Variações continua a ser relevante 40 anos depois. 

Estar nos teus 20s é ser assombrada pelo peso do “Foi mais um dia e tu nada viveste” e do “Quando pensares no tempo que perdeste / Então tu queres mas é tarde demais”, ao som do instrumental mais dançável de sempre. É também estar numa segunda-feira à noite no teu quarto, a ouvir “É pra amanhã” em loop, enquanto tentas começar a escrever um texto uma hora antes de o teres de entregar.

– Paloma Moniz, música no projeto Girls 96


Em 1998, com uma segunda edição em CD, Anjo da Guarda ganhou duas coisas: um grafismo pintado de verde-alface, de meter medo ao susto, e uma curiosa simetria de alinhamento. “…O Corpo é que Paga” deixou de dar o arranque, empurrado para a segunda faixa por “Povo que Lavas no Rio”. Não me parece decisão que António Variações aprovaria: apesar do mesmo nível de descaramento e verve, não tem metade da força motriz de “Corpo” (tema oficial da autodestruição).

Pode ter sido uma escolha utilitarista: uma forma de não votar ao esquecimento um tema central na obra de Variações. “O mais sério candidato ao prémio de mau gosto do ano”, escreveu então Trindade Santos, sobre o lado A do duplo single com que Variações se estreou em disco e chocou o país. Mas enquanto o lado B, “Estou Além”, mereceu um lugar no LP e no cânone da pop nacional, “Povo que Lavas no Rio” ficou-se pelo vinil de 12 polegadas.

Resgatado 16 anos depois numa bolacha digital, “Povo que Lavas no Rio” renasceu como a abertura de Anjo da Guarda. O encerramento, contudo, seguiu inalterado: “Voz-Amália-de-Nós”. À entrada, um fado pilhado a Amália; à saída, um hino a Amália. Um monumento gótico aos primeiros segundos, cinema de guitarras e sintetizadores a pulsar, acaba abruptamente para se revelar uma invocação à capela:

Fiz dos teus cabelos a minha bandeira
Fiz do teu corpo o meu estandarte
Fiz da tua alma a minha fogueira
E fiz do teu perfil as formas da arte

A estrofe é repetida de imediato, mas o verniz já estalou: esta homenagem não é um elogio fúnebre, nem se trata de idolatria sem mais. É pura celebração em tons de new wave arejada; é um convite universal ao poder de escutar alguém, fintando os preconceitos e a presunção de que passou o seu prazo. António abriu o peito a Amália; nós abrimos os nossos a Variações.

Pedro João Santos, crítico do Ípsilon e radialista na Antena 1


Até aos 20 anos, nunca tinha ouvido muito Variações. Conhecia os hits, havia uma mitologia vaga que se aprende quando passa “O Corpo É Que Paga” em qualquer arraial, e pouco mais do que isso. Agora, a mitologia passou a história. Os dois álbuns são coleções de bangers, não há skips. Mas a canção a que volto mais é sempre “Visões-Ficções”. A cadência repetitiva, os swell synths, o espaço, os acordes e as linhas de synth e guitarras perdidas. A letra é a mais crushing e overwhelming. Há uma condenação, um apocalipse. E ainda assim, apesar de tudo, é projectado. Não sei sobre o que é. Além disso, volto também por ser das poucas que não é crafted com a exactidão da maior parte da discografia. O fim da canção é vago, as linhas vão-se apagando de forma livre. Vai-se perdendo. Na altura, falei muito dela com o meu amigo André, e ele teria escrito um texto melhor que o meu. Anyway, Variações é o rei para sempre, génio, iconic.

Ricardo Gonçalves, músico no projeto Girls 96


“Canção” é provavelmente o meu tema favorito do Variações. Escolha improvável, eu sei. Não é a canção mais bonita dele, nem de todo a mais popular, mas há alguma coisa que faz com que me surja de imediato à cabeça quando se fala no artista. O instrumental é particularmente interessante, começa com uma melodia desconcertante em cravo, acompanhada de adufes (penso que são adufes). Remete para influências barrocas ao mesmo tempo que introduz elementos tradicionais e uma sensação de inquietação e melancolia. Curiosamente, são todos elementos que também influenciam a minha música.

A voz do Variações quando entra é praticamente um choro e, quer se goste quer não, é impossível ficar indiferente, principalmente no seu lamento: “Mal ouço e quase choro… Porque choro não sei…”. A letra, que só há pouco tempo descobri ser um poema de Fernando Pessoa, um dos meus poetas favoritos desde adolescente, tem uma tristeza, ânsia e mistério que sinto muito em António Variações e, em particular, nesta “Canção”, e que me intriga ao ponto de ficar a ouvir em loop.

– Sofia Marques, música, artista e produtora no projeto MEMA.


“Perdi a Memória” é a minha música favorita do António Variações; é uma espécie de eco das minhas próprias experiências.

Ouvir “Perdi a Memória” é como folhear uma espécie de álbum de fotografias antigas, onde cada imagem conta uma história. É reviver os altos e baixos da minha vida, abraçando cada momento como parte daquilo que sou. Mesmo quando as lembranças parecem estar a desvanecer, mesmo quando nos esquecemos de pequenos detalhes, sinto que existe uma certa beleza nessa imperfeição.

Então, ao som desta música, eu me permito-me perder nas memórias, dançando numa espécie de corda bamba entre o passado e o presente. Porque, afinal, é nas memórias perdidas que muitas vezes encontramos a verdadeira essência de quem somos.

– Teresa Montez, assessora de imprensa

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