Descemos a avenida, mas ficamos exatamente no mesmo lugar. As celebrações do 25 de Abril culminam com o desfile da Avenida da Liberdade, entre cravos, tanques, e palanques políticos, ano após ano, repetem-se as frases de efeito, roubadas a canções: a cantiga é uma arma; foi bonita a festa pá; e claro, o povo é quem mais ordena. Cinquenta anos depois, estamos a mimetizar as canções, os gestos, e as memórias dos nossos pais e avós, que viveram, em carne e osso, uma ditadura, um golpe militar e um processo revolucionário. A cantiga é uma arma – e a nostalgia também. Refresquemos a memória: a cantiga é uma arma, mas contra a burguesia, assim afirmaram o GAC, uma cooperativa de músicos marxistas-leninistas formada em 1974 para “reprimir” o “sistema capitalista burguês”. Foi bonita a festa pá, mas logo na quadra seguinte, Chico Buarque relembra o 25 de novembro: “já murcharam tua festa pá”. O povo é quem mais ordena, mas a “Grândola, Vila Morena” não foi um hino que surgiu do vácuo, nem José Afonso um mito olímpico; no mesmo ano em que grava “Grândola, Vila Morena”, José Afonso foi internado com um esgotamento nervoso depois de ser escorraçado pela extrema-esquerda durante um concerto em Paris – “José Afonso é um atraso de vida” que não para de “choramingar” e “não faz mal a uma mosca”, diz o panfleto que circulou antes do concerto na Maison de la Mutualité, dia 10 de novembro de 1970.
A memória, assim como a canção, está em movimento. E a nostalgia é uma arma que impede a livre circulação da memória. As frases batidas tanto batem até que não furam. É evidente que devemos, se assim o quisermos, descer a avenida e entoar a “Grândola, Vila Morena”, contudo, em 2024, reproduzir somente os mesmos versos de sempre, qual pastiche, sem memória histórica, sem recontextualização, sem qualquer humanização, ou atualização de repertório, é um mero exercício nostálgico. A canção de protesto histórica é um bem precioso, deve ser preservada, liberta de redomas musicais e ideológicas, e sobretudo, analisada em confronto com o passado, para cumprir o seu papel de agente de mudança.
No geral, as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril não se estão a fazer ao som do rock, do pop, do jazz, do hip hop, da eletrónica, de compositoras mulheres, ou sequer das canções independentistas africanas – estas últimas, interpretadas por músicos que foram perseguidos, torturados e presos, em plena Guerra Colonial. No particular, conseguimos encontrar alguns indícios de mudança, enfim, após cinco décadas: o Musicbox, em parceria com a BANTUMEN e Tristany Mundu, celebrou a Revolução dos Cravos com a festa “Monangambé” – esta canção é uma escolha certeira, é um poema de António Jacinto, que era interpretado, clandestinamente, por Ruy Mingas, usualmente para os estudantes africanos da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa – “Quem capina, quem paga recebe desdém/ Fubá podre, peixe podre/ Pano ruim, cinquenta angolares/ ‘Porrada se refilares’?”. Outra exceção à regra: o espetáculo “A Luta Continua”, o concerto de comemoração no Centro Cultural de Belém dirigido pelo clã Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo, que incluiu uma canção de José Carlos Schwartz, músico da Guiné-Bissau que denunciou o colonialismo enquanto participava na luta armada, e compositoras como Capicua, que, recentemente, transfigurou Sérgio Godinho em “Que Força É Essa Amiga”. Esta canção de Capicua devia ser um estudo de caso, é um exercício de memória anti nostálgico que aponta um caminho saudável para a renovação da canção de protesto: em frente, a olhar para trás.
Foi precisamente em frente, a olhar para trás, que escrevi um livro, “A Revolução antes da Revolução” (Livros Zigurate), onde argumento que, em 1971, ocorreu um golpe musical que serviu de antecâmara para o 25 de Abril. Uma das cenas centrais do livro é em Paris, quando José Mário Branco encabeçou três álbuns pilares: Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades; Cantigas do Maio de José Afonso; e Os Sobreviventes de Sérgio Godinho. E aqui está uma parte considerável do repertório que entoamos a descer a avenida. É um repertório fundamental, porém, é simultaneamente um repertório curto, não é a história completa da canção e do povo português, não é suficiente para compreender o agravar das tensões sociais e políticas que vivemos.
Hoje, as barreiras entre o elitismo e o provincianismo, entre o popular e o popularucho, entre o rock e a canção romântica, foram violentamente derrubadas. No entanto, persiste um receio excessivo em ampliar o nosso Cânone de Abril, em refletir historicamente sobre a canção que nos trouxe aqui. A banda sonora de 2024, repleta de compositoras mulheres, de músicos não heteronormativos, ou da diáspora africana, não se formou da noite para o dia, pelo contrário, foi um processo complexo, tortuoso, invisível e de constante superação e mudança. E se tudo o mundo é composto de mudança, troquemos-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança. 25 de Abril sempre, mas sempre diferente.
15 CANÇÕES PARA CELEBRAR UM ABRIL DIFERENTE
“Existem Pedras”, de Teresa Paula Brito e Nuno Filipe
“Canção De Ódio E Raiva N.º 2”, Deniz Cintra
“Venho de Longe”, Duo Ouro Negro
“Acid Nightmare”, Xarhanga
“Animais De Estimação”, Filarmónica Fraude
“Caravelas moribundas”, Rita Olivaes
“Quadras soltas”, José Manuel Osório
“Paxi Ni Ngongo”, Bonga
“Camarada”, José Cid
“Meu Amor é Marinheiro”, Amália Rodrigues
“Lua Kata Kema”, José Carlos Schwarz & Le Cobiana Djazz
“Onde O Sol Mais Castiga”, Paco Bandeira
“Do menino que foi jovem”, Vieira da Silva
“Canção tão simples”, Adriano Correia de Oliveira
“Manuel”, Intróito
“Monagambé”, Ruy Mingas
O livro A Revolução antes da Revolução pode ser adquirido numa livraria perto de si ou online.