Não vou estar com rodeios e vou simplificar a coisa ao máximo: 00:00 – editado no passado dia 14 de março – é um disco sensacional. E margô, nome artístico de Margarida Martins, é uma artista excitante.

Juntou-se a St. James Park e Pedro Carvalho para a construção das seis faixas que compõem o seu EP de estreia. Permitam-me, desde já, colocar-vos a par da realidade: 00:00 é para dançar… Mas é também para chorar. Acreditem. É uma das mais belíssimas reflexões sobre aquilo que é ser constantemente consumido pela ansiedade. São poemas simples, mas sentidos, em tom de desabafo. 00:00 é o colocar cá fora o que habita dentro de margô.

Capa margô
Capa 00:00. Fotografia: Madalena Rodrigues

Num belo final de tarde a tornar-se noite, a Playback trocou uns quantos dedos de conversa com margô sobre a sua relação com a música, o universo electropop melancólico dançável de 00:00 e o que se segue no futuro.

O início da jornada musical

É na Suíça, onde viveu até aos doze anos, que começa a história de amor entre Margarida e a música. “Comecei a estudar Música aos três anos, por influência do meu pai, que tocava guitarra e integrava alguns conjuntos musicais”, conta. Sempre gostou de cantar, mas nunca se envolveu na vertente de canto; decidiu dedicar maior atenção ao piano. Entre a adolescência e a maioridade, já em Portugal, começou a perder o interesse pela música, o que, de acordo com a própria, talvez se tenha devido “a uma fase de revolta” após ter perdido o seu pai. O facto de viver em Chaves, “uma cidade pequena”, também não ajudou. “Não havia aquela intensidade de aulas como antes. Não me sentia desafiada. Não me sentia a evoluir.”

Contudo, com tanto a acontecer, com tanta emoção à flor-da-pele, sem saber como processar e lidar com tudo, Margarida dá mais asas à sua veia composicional e encontra na escrita a forma de partilhar os seus desabafos. O que distingue Margarida de outros tantos que fazem o mesmo é que “escrevia, rasgava e deitava fora”, atormentada pelo medo de ter algo a que se assemelhasse a “um diário”. É por volta dos quinze anos que começa “a musicar aquilo que escrevia”, com a ajuda da guitarra do seu pai, mesmo não dominando o instrumento.

Entretanto, entra na Universidade do Minho, onde se licencia em Economia, e lá tenta manter o processo de escrita ativo. “Na altura, acho que mostrei apenas uma música às minhas amigas. Não fazia muita questão de mostrar as minhas cenas”, afirma. Em 2017, leva uma belíssima versão de “Riptide” de Vance Joy ao The Voice Portugal, que a faz integrar a equipa de Marisa Liz. Daí então, tudo mudou. “O The Voice deu-me um forte impulso para levar isto [a música] mais a sério”, partilha. Margarida, que se autointitula de pop girly desde tenra idade, acredita que, lá no fundo, sempre se fez acompanhar por uma voz que lhe dizia que queria fazer da música a sua vida, mas vivia em negação. Confessa que “a pressão” que sentia de querer “agradar” à sua mãe sobrepunha-se a qualquer outra coisa, neste caso ter “um emprego estável – um plano A”. Da experiência no The Voice, leva não só “a aprovação do caraças”, mas principalmente o contacto com outras pessoas. “Havia bué gente que era realmente artista: compunham, produziam, tinham bandas e projectos. Rodeei-me de muita malta que fazia música, seja em full-time ou não. Sinto que estas conexões me fizeram perceber que podia fazer música e não desistir do meu plano A, que podia fazer mais do que uma só coisa.”

Pelo meio, Margarida muda-se para o Porto, onde tira um mestrado em Economia Social, conciliando os estudos com part-times e uma banda da qual se tornou vocalista, os Malaboos. “Fazer parte de uma banda foi essencial para encontrar o meu pé”, confessa. Margarida tinha as bases essenciais “de teoria, de compor e de cantar”, mas a parte técnica era-lhe “uma cena completamente alheia” e, nesse sentido, “foi bom começar [a fazer música] em grupo.”

O confinamento enquanto alavanca de crescimento

O facto de Margarida não viver na mesma cidade que os restantes membros da banda (eram todos de Viana do Castelo) e de sentir que, por ser mais velha, as suas responsabilidades e prioridades iam acumulando, fê-la afastar-se do grupo. “Não ia conseguir estar a cem por cento e isso seria muito injusto para eles”, afirma. Entretanto, meteu-se a pandemia e “as pressões desapareceram todas”. Enquanto que, para muitos, foi possivelmente uma das épocas mais horríveis de sempre, houve “uma parte” de Margarida “que foi salva” durante essa altura. “Não havia pressões para arranjar trabalho. Não havia pressões para ser adulta, e etc. Então, consegui desligar-me e acabei a focar-me mais na música.”

No confinamento, Margarida começou a compor cada vez mais e a explorar softwares de produção (o Ableton foi o escolhido). “Sempre fiz música calma, com voz e guitarra, muito cantautora”, revela. “Mas acabei por perceber que não era bem isso que queria”, acrescenta. Influenciada pelos estilos de música que mais ouve (pop e electrónica), constatou que queria fazer “música mais mexida”. No entanto, Margarida conta que fazia música por ser “divertido” e, portanto, não tinha quaisquer planos. “Queria só aprender, descobrir coisas novas e explorar”, remata.

margô por Madalena Rodrigues
Fotografia: Madalena Rodrigues

Nem ela, nem ninguém, fazia conta que, deste processo de experimentação, iria nascer o seu primeiro single, “dançar deitada”, lançado no último trimestre de 2023. Canção esta que retrata precisamente as sensações de solidão e de prisão vividas em contexto pandémico. Por sentir que a “dançar deitada” não estava “alinhada” com os temas que viriam a constituir o seu EP, desde a “sonoridade” à “parte emocional”, Margarida decidiu não incluí-la no alinhamento de 00:00. “Neste EP, quis manter alguma coesão, daí as produções serem todas recentes, ter os mesmos produtores comigo e a mesma linha de sonoridade, apesar do EP ir a muitos sítios musicalmente”, explica Margarida. E a “dançar deitada” não é uma produção recente, mas queria que existisse na mesma “porque, lá está, foi a primeira música que fiz e fazia sentido para mim lançá-la”.

Margarida continuou sem planos, ia apenas fazendo música e lançando o que lhe fazia sentido. “Nunca conceptualizei um EP, nem um álbum. Sou zero essa pessoa. Vejo só o que acontece e depois lanço”, admite. Não é preciso ser-se entendedor da indústria da música para saber que para lançar o que quer que seja é necessário haver “investimento financeiro”, factor este que Margarida considera que ainda não se fala o suficiente. “Não tenho label. Não tenho nada. Isto é um investimento do meu bolso”, conta. Neste sentido, decidiu começar por algo menos extenso, um curta-duração.

O fechar de um ciclo

agora vai” foi o primeiro tema do EP a ser composto. “Escrevi no início da minha relação, quando estava naquela dúvida existencial de ir para uma relação e investir noutra pessoa, de ser algo dois a dois, e de perder a minha independência e individualidade. Como não sou boa a escrever músicas de amor, escrevo sobre as ansiedades do amor [risos]”, explica. Segundo nos conta, foi a única a nascer ao piano, a soar a uma Lena D’Água, e ganhou uma nova versão em 2020, quando uniu esforços com os seus amigos e músicos Eduardo Moreira e Carlos Sanches, juntando mais uns quantos instrumentos. Ficou guardada na gaveta até decidir lançá-la e aí ganhou uma nova roupagem.

“depois”, que descreve o que é sentir pressão do futuro, surge numa altura em que Margarida andava a explorar mais as possibilidades do Ableton, brincando com harmonias e samples de voz, “que têm um lugar em destaque na música”. Até aqui, não havia EP desenhado na cabeça de Margarida.

O cenário só muda quando começa a trabalhar nos temas “(não) quero ir”, “eu sei lá” e “lençol”. Já a viver em Leiria, na localidade que «não existe», nasce oficialmente o alter-ego margô. Estas três canções começaram a surgir numa fase em que “estava bué motivada para fazer música”, porque tinha sido convidada para tocar no Festival A Porta, em Leiria. “(não) quero ir” é partilhada com o mundo em forma de terapia. “Começou por ser triste, mas acabei por encontrar um espaço feliz nela, no sentido em que acaba no tom de: quero e vou conseguir” – seguir um caminho mais electrónico contribuiu para esta dualidade. “eu sei lá” é um retrato vívido do seu dia-a-dia que, afinal, também é o nosso: a pressão de termos de saber quem somos e o que queremos ser. Um desabafo directo e cru embelezado pela produção de St. James Park, que o tornou menos obscuro e mais potente. “lençol” foi a canção “mais difícil de terminar”. margô explica que gostava da “mensagem”, mas a nível musical estava “boring”. Neste sentido, conta que este tema, que retrata “uma fase tóxica”, quando usava o facto de ser jovem como “desculpa” para não se tratar bem, foi salvo pelos seus produtores. O Pedro criou o “break do fim da música” e o St. James Park encontrou o “sweet spot”. Como a própria nos diz: “Se não fossem eles, esta canção provavelmente não teria entrado no EP, porque eu não sabia mesmo o que fazer com ela, estava lost”.

Por fim, nasceu a “besoin de toi”, a última peça do puzzle. Aqui, margô foge da ansiedade e celebra um adeus a uma relação tóxica num tom leve, seguro e confiante. “Senti bué que havia cenas que queria dizer, mas não estava a conseguir dizê-las em português, porque iam para um lado dark. Então, acho que o francês me deu um lado mais baddie, que estava a precisar”, afirma. Seis canções, um EP. “No fim, soou-me tudo bem e pensei: está feito.”

margô não deixou o medo vencer e, passados estes anos, não só escreveu, como partilhou com o mundo um diário em forma de seis fortíssimas canções, resultado de “um período chato, quando não sabia o que fazer da vida”. Enquanto continuar a escrever sobre si, quer sejam tristezas ou alegrias, não sente qualquer medo em ser vulnerável. “Estou na boa comigo mesma. Sou até demasiado transparente, nesse sentido”, diz. “Escrever ajudou-me bué a processar e a racionalizar aquilo que estava a sentir” e é aí que está a beleza da música enquanto terapia. margô não considera as suas histórias “especiais”. Na verdade, considera-as autênticos “clichês”, mas não é por isso que deixam de ter importância. “No fundo, espero que este EP encontre as pessoas certas, que se revejam naquilo que estou a sentir e, opá, chorem e dancem, que era o que eu fazia quando estava nesse buraco”. Temos letras melancólicas. Temos sons dançáveis. Não há melhor combinação, na verdade. E, pelos vistos, margô fê-lo “involuntariamente”. Como a própria nos diz: “Queria, de certa forma, tentar tornar leve todas as coisas que me atormentaram durante tanto tempo.”

“Este EP é o fechar de um ciclo e o começo de um novo”, afirma. E é por ter este significado que surge o título para o disco. Meia-noite é sinónimo de um “novo dia”, ou de um “recomeço”, e assim ficou. É o aceitar e o deixar para trás uma fase consumida pelo medo e pela ansiedade, e o abrir portas a uma nova e auspiciosa fase. No entanto, margô conta que a escolha do título foi “difícil” e só se debateu com esta questão na entrega do EP. “Não me apetecia palavras, tenho uma relação bué complexa com palavras, ou odeio, ou amo. Não queria uma cena longa. Queria uma cena simples. E pensei em números. E pensei: se a Cláudia Pascoal consegue usar um ponto de exclamação [referência aos álbuns ! e !!], eu posso e consigo usar números”, conta entre gargalhadas.

Musicalmente, 00:00 é uma mistura de sonoridades que margô acredita que se deve ao facto de ouvir “bué coisas”. Cresceu a ouvir reggaeton, hip-hop e R&B, relembrando que morou no Bairro Social “quando era miúda”, na Suíça, tendo estado “rodeada de pessoas de todo o mundo”. E, pelo meio, tem as bases do pai, que vão desde Pink Floyd a Rui Veloso. “Neste momento, estou numa vibe mais de pop e electrónica. Tudo o que seja super catchy eu gosto. Tudo o que dê para dançar e que me faça feliz”, partilha. margô sente-se cada vez mais maravilhada com músicas que tenham “uma produção única, meia crazy e, por vezes, meia minimalista”. Sem surpresa, Fred again.. é uma das suas maiores referências ultimamente.

O começo de um novo ciclo

Embora já dê uns toques na produção, margô não esconde que “gostava muito de ter tempo” para se “focar” e “aprender” realmente a produzir. Para além de ser uma paixão que tem vindo a crescer cada vez mais dentro de si, considera que “faltam mulheres” nesta vertente. E talvez seja isto que podemos esperar no futuro de margô: mais trabalho com a produção, cenas mais “fun” e menos “desabafo e sentimento”. E talvez venham aí mais “singles soltos”, uma vez que se encontra “numa fase de descoberta”.

Depois de ter apresentado o seu EP, pela primeira vez ao vivo, na Livraria Arquivo, em Leiria, margô vai abrir o concerto de St. James Park, no Musicbox, na próxima quinta-feira, dia 4 de abril. “Sou uma pessoa que trabalha com as expectativas muito baixas – é a melhor forma para não me desiludir. Tenho bué ansiedade de tocar ao vivo, portanto vou panicar antes [risos], mas espero divertir-me. Vou levar uma série de canções, vou experimentá-las ao vivo, e ver o que resulta ou não, que é o mais divertido”, anuncia.

margô vai fazer a primeira parte do concerto de St. James Park no Musicbox, em Lisboa. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.

Fotografia de destaque: Madalena Rodrigues

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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