Apontem o nome: Carolina Miragaia. Caso não estejam a par, deixem-nos apresentá-la. No final de janeiro, a artista multifacetada natural do Faial (mas radicada em Almada) editou exobiological com a ajuda do muito excitante coletivo/editora Æ, um curta-duração onde abraça várias estirpes de música eletrónica. São seis excelentes malhas onde “pouco adiantam palavras ou categorizações quando falamos de lançamentos tão ricos quanto este”, como se pode ler n’A Cabine.
Como se isso não bastasse, Carolina encarna também o papel de L, a protagonista de Baan, o novo filme de Leonor Teles (para o qual contribuiu também para a banda sonora). Se L parece ser a rapariga misteriosa e fixe da qual queremos ser amigas, perdida numa crise existencial dividida entre uma Lisboa servida ao estilo de Wong-Kar wai e Bangecoque, é porque a performance de Carolina assim a capta. Curiosamente, a própria Carolina tem semelhanças com L. Não é particularmente misteriosa – pelo contrário – mas é uma rapariga da qual ganhamos rapidamente vontade de sermos camaradas.
Entre exobiological e Baan, a Playback foi até Cacilhas para comer tostas com a jovem e saber mais do seu percurso artístico até ao momento.
Antes de lançares música a solo, estavas numa banda chamada Vem Veneno [em 2019 editaram o subvalorizado Na Ponta da Língua]. Que desafios encontraste em deixares de criar em contexto de banda para criares sozinha?
Imagina, esse contraste nunca existiu realmente porque antes de estar na banda, eu já fazia experiências [com o Ableton]. Tudo começou [risos] quando comecei a ter aulas de guitarra, e tu chegas a um ponto em que queres começar a compor as tuas próprias músicas. Depois, a banda apareceu, mas eu fui fazendo sempre coisas sozinha. A diferença é que, quando estás em banda, tens de engolir sapos e corresponder também ao que o resto da malta quer ou não quer. Quando estás com malta bué inclusiva e aberta, isso pode funcionar bem – e funcionou na altura. Mas nós éramos muito jovens [risos]. Quando a banda acabou, achei que era a altura certa para fazer coisas para mim mesma e ver no que dava. Foi um processo bastante natural. Aliás, sempre foi.
A nível técnico, como decorreu esse processo de transição? Agora a música que fazes é praticamente toda feita no computador com DAWs.
No outro dia estava a falar com o Bejaflor e ele disse-me uma coisa que fez bué sentido na minha cabeça. Tanto eu como ele, quando estamos a produzir e a compor, estamos a fazê-lo como se fôssemos uma banda. Começamos pela guitarra, depois percussão, baixo, por aí fora. Para mim, fazer música começou pela guitarra, mas eu queria mais e comecei a experimentar meter um beat aqui e acolá, só que com os instrumentos que já existiam no Ableton. Depois, comecei a sacar loops e sample packs e a perceber melhor como tudo funcionava. Isso ajudou a melhorar o meu nível de produção porque comecei a perceber muito melhor como se produz música. Ao início, eram mesmo só experiências para ver o que resultava ou não resultava. Mas agora é tudo estranho porque… Imagina, eu tenho o meu pop, mas que ainda não lancei praticamente nada desse meu pop – só a “Ponto de Fuga” e a “Lua Cheia”. Eu tenho algumas músicas feitas à base de guitarra, mais próximas da minha origem [indie rock], mas depois tenho estas composições de eletrónica que não usam nenhum instrumento acústico. Não consigo explicar. Do nada, fico obcecada com um som específico e com vontade de explorá-lo ao máximo.
No K38Suh9FH98mBKR, ficaste obcecada com o mito virtual The Backrooms. Neste exobiological, lidas com o limite das relações entre a tecnologia e a natureza. Mas acho que essa relação é algo transversal à tua obra – explorar o limite da tecnologia para desenvolveres a tua pop.
Isso faz sentido, mas o exobiological surgiu um bocado do nada. Eu estava no TikTok e vi uma tendência com a qual fiquei obcecada e queria ver se conseguia fazer alguma coisa para chegar ao mesmo feeling, sabes?
Qual era a trend?
Já ouviste falar nos Opium Birds? Essa trend estava associada a uma música chamada “Interface” – é de um artista que é o Sgarz. Na Internet, esse estilo tem o nome de dark plugg, e é caracterizado por um ambiente que é bué escuro, mas bué neutro ao mesmo tempo, e por ser mega futurista. É tudo muito ambíguo. Eu queria ver se conseguia chegar a esse tipo de sonoridade – e consegui. À minha maneira, mas consegui.
A nível de referências, este exobiological lembra-me Aphex Twin e o lado mais dançável da Kelly Lee Owens, mas também Drain Gang. Dado que os Vem Veneno eram uma banda de noise rock e os teus projetos anteriores eram mais próximos do hyperpop, como é que este caldeirão de referências se manifesta nas tuas obsessões?
Achas que o exobiological é dançável?
Bem, eu dancei com a “micro.bio”… [Risos]
A sério? [Risos] Ok! Sim, eu sou bué drainer [pessoa que ouve Drain Gang]. Acertaste em cheio nessa referência. Mas acho que o álbum ficou com essas referências mais “trappy” porque usei mesmo sons de trap. Toda a percussão do EP é feita à base de pacotes de trap. Agora, o resto… Os sonzinhos mais digitais vêm de pacotes de glitch e de coisas mais eletrónicas, como máquinas e assim. Mas é engraçado estarmos a falar disto porque eu, durante anos, e especialmente quando estava na banda, era super preconceituosa com o trap. Tinha bué a mania de que trap e outro tipo de músicas eram thrash – mas comecei a gostar de ouvir secretamente.
O que é que ouvias?
Sei lá, ouvia as músicas mais–
LON3R JOHNY?
LON3R JOHNY ouço assumidamente, esquece. Foi o LON3R que me introduziu ao trap tuga [risos]. Mas na altura, ouvia as músicas mais famosas e gostava, só que ficava a pensar que ninguém podia saber que eu gostava de ouvir trap. Portanto, tornou-se grande guilty pleasure. Mas passado uns anos, eu assumi só que curtia de trap e que não vale a pena ser preconceituosa com isso. Eu curto imenso da percussão de trap e do quão catchy são os beats e acho que passei essas referências de forma inconsciente para o meu trabalho. Mas eu ouço outras coisas, atenção! Não sou trapper [risos].
Mas és drainer! [Risos]
Isso é diferente [risos]! Eles são tipo os trappers sensíveis! [Risos]
Neste exobiological, escuta-se uma melhoria no teu nível de produção face aos teus lançamentos anteriores. Como foi trabalhar os sons deste EP?
Concentrei-me maioritariamente nas linhas de percussão e no baixo. O resto foi mesmo só o ambiente das faixas. Há algumas músicas onde as melodias são muito importantes, mas surgiu tudo muito a partir de exploração. Imagina, o EP tem claramente influências de Drain Gang e de trap, mas eu queria desconstruir esse tipo de beats. Esse processo envolveu literalmente pegar em sons e metê-los em sítios aleatórios das tracks do Ableton e ver se resultava ou não. Este EP não tem assim tanto de sound design, mas parece que tem porque foquei-me mesmo muito na composição dos sons e onde é que eles estão do que propriamente em construir um som de raiz. Também há bué camadas e as melodias foram feitas a partir de uma opção do Ableton que te permite desenhar melodias à toa numa escala que tu escolhes. Eu fiz muito do exobiological com a ajuda dessa ferramenta. Desenhei umas coisas à toa, depois excluía as notas que ficavam mal e manipulava outras para chegar ao som que queria.
Achas que é por isso que estas canções têm hooks que as aproximam de serem pop?
Sim, é verdade. Mas na minha cabeça eu já tenho uma estrutura pop interiorizada e não sei se isso é bom ou mau.
Qual é essa estrutura?
Intro, verso, refrão, ou então verso-ponte-refrão, e depois outra ponte e outro. Tudo muito estruturado. Por acaso acho que no exobiological as canções não obedecem a essa estrutura.
Não, mas os hooks estão lá.
Sim, e existem bué secções. Quando estava a produzir as canções do EP, estava com um bocado de medo de que pudessem cair num sítio chato, porque podiam ser repetitivas. Então, também quis criar essas secções para respirares e manteres-te agarrado à música.
Falaste do Bejaflor no início da conversa e o exobiological foi editado pela Æ. Como é que o coletivo/editora entra na equação do EP?
Para aí em novembro [de 2023], recebi uma mensagem do Bejaflor a dizer que estava interessado em ter-me na Æ. Fiquei super contente porque gosto imenso de toda a gente da Æ e daquilo que criam. Portanto, aceitei logo. Eu mostrei-lhes as músicas do EP e perguntei se era para lançar e eles disseram que sim. Foi tudo muito simples.
Falemos agora da tua faceta cinematográfica. Além das curtas que realizaste no passado, encarnas L, a protagonista de Baan, o mais recente filme da Leonor Teles. O que retiras da tua experiência com o Baan que pode ser transposto para a tua criação musical?
Boa pergunta. Para além de ter aprendido que gosto bastante de compor bandas sonoras – disclaimer, também fiz música para o filme –, acho que o filme me deu mais confiança em expor-me. Eu tive durante muito tempo uma câmara apontada a mim, entendes? Às vezes muito perto da minha cara [risos]. Acho que estar exposta assim e apresentar-me com esta vulnerabilidade vai-me ficar no inconsciente e, quando eu for tocar ao vivo, isso vai transparecer. Vou estar mais à vontade.
Como foi encarar o desafio da L?
Foi muito intenso. Imagina, ela é uma personagem com a qual me identifico bastante. Tanto emocionalmente como em gostos e vivências. Só que também há certas coisas que são só dela e que para mim foram complicadas de atingir. Por exemplo, há certas emoções que ela tem e eu não sou nada assim. Então, esses pequenos detalhes – que são grandes detalhes! – foram as fases mais complexas. Eu ter de me submeter ao espaço emocional dela foi a coisa mais desafiante de sempre, estás a ver? O resto foi mais calmo porque a Leonor ajudou bastante com tudo e há detalhes da L que são meus. A maior parte da roupa dela é minha e a guitarra que ela toca também é a minha. Foram pequenas coisas de que eu e a Leonor fomos falando e que ela implementou para me ajudar a sentir-me mais confortável na personagem.
Isso volta ao ponto de te sentires confiante na tua própria pele.
Imagina. Durante o filme todo, senti-me sempre muito insegura e isso podia prejudicar um bocado o meu trabalho. Mas houve um momento em que vi só que tinha de parar de sentir isso e tinha de ter mais confiança em mim mesma para conseguir fazer o papel. E isso resultou, de facto. Eu estava sempre a pensar que não era boa o suficiente e que tudo o que eu fazia não estava bem. Porque eu não sou atriz, estás a ver? Mas a Leonor dizia-me para não pensar nisso; se pensasse nisso, é que a coisa ia de certeza ficar mal. E ela tinha razão. Também foi um desafio tirar esse pensamento da minha cabeça e fazer o que tinha de fazer com a L.
Quando fazes música agora, sentes que aplicas esse pensamento? Ou são duas vertentes tuas completamente diferentes?
É totalmente diferente porque a minha música é bué pessoal. Quando estou a produzir e a compor, estou no meu mundinho. Quando lanço alguma coisa, ya, fico insegura, mas também tento não minar muito a minha cabeça com esse tipo de pensamentos. Mas quando estou a fazer música, não sinto isso. Talvez possa sentir ansiedade se pedir opinião a alguém, mas quando faço música, divirto-me bastante.
Como acabaste a contribuir para a banda sonora do filme?
Desde o início que a Leonor queria que eu fizesse a banda sonora original porque ela sabia que eu fazia música. Já depois de terminarmos a rodagem do filme, ela ia-me enviando imagens para eu ver como estava a ficar e inspirar-me. Como estava tudo tão fresco, acho que também ainda estava no mindset do filme e isso influenciou a minha procura de sons e as melodias que fiz. É muito engraçado ver como o meu inconsciente influencia aquilo que faço.
Pergunta estranha: quem fez a banda sonora foste tu ou a L?
[Risos] Imagina, a L não podia fazer isso porque ela não é músico [risos].
É arquiteta. Mas tu és uma arquiteta sonora.
É verdade. O exobiological é uma arquitetura sonora. Mas acho que fui eu a fazer para ela.
Como estás a pensar transpor as tuas canções, tanto as do exobiological como as outras, para palco?
Com o exobiological acho que vou fazer uma coisa mais à base de eletrónica, com devices e assim, mas eu romantizo muito a ideia de tocar com instrumentos. Eu quero imenso lançar um álbum de pop para tocar com outras pessoas. Isso é o meu tipo de concerto perfeito.
Tens saudades de tocar numa banda?
Imensas. Uma banda é uma união bué querida de pessoas. O meu sonho é mesmo ter uma bandinha que me acompanhe em palco para tocar as minhas músicas. Quero bué que isso aconteça – e vai acontecer.
Esse novo disco de que falas, está para breve? Que tens mais planeado para o futuro?
Eu gostava! Vamos ver. Se tudo correr bem, talvez. Tem de ser. Estou há bué tempo para me lançar na pop. Eu fui fazendo coisas como o exobiological on the side, mas quero imenso mostrar às pessoas a minha pop porque vem mesmo do coração. Guitarrinha e voz com instrumentos e letra. Isso é que quero mesmo mostrar. Além disso, eu tenho um projeto de som e vídeo ao vivo com o meu pai – ele está a fazer doutoramento em Multimédia nas Belas Artes –, que se chama Stand By, e vamos fazer uma performance na Casa do Comum, em Lisboa, no dia 28.
Carolina Miragaia faz parte do cartaz do showcase da Æ que decore esta sexta-feira (16) no Cargo 111, em Lisboa.
Baan chegou às salas de cinema portuguesas no passado dia 8 de fevereiro.
Fotografia de destaque: Persília Barros