Permitam-me confessar, desde já, o meu entusiasmo em torno desta que é a primeira edição de 2024 da Playback. Por este motivo, trago-vos a minha primeira reportagem, que me deu tanto gozo escrever. Explora um conceito que se instalou na minha mente como uma semente: música feita em colaboração. Honestamente, acho que se fala muito pouco sobre isto ou, melhor dizendo, sobre a magia que existe por detrás de todo um processo criativo colectivo. Uma prova física dos encantos disto mesmo é o álbum de estreia, VOLUME I, da AVALANCHE. Uma compilação de dez (+1) canções em que o R&B, o soul, o reggaeton e o jazz se fundem num universo indie pop, com a participação de dezoito artistas: Alda, Ana Cláudia, Ana Mariano, Choro, Guire, INÊS APENAS, Inês Marques Lucas, iolanda, kikomori, LEFT., Luar, Matheus Paraizo, NED FLANGER, Rita Onofre, Sara Cruz, SOLUNA, Tom Maciel e YANAGUI. Ah, e o que é a AVALANCHE? Questionam vocês e muito bem.

Ora, trata-se de “um colectivo de músicos focado em criar espaços para a música feita em colaboração e união de talentos ímpares, com o objectivo de criar arte «porque sim»”, pelo menos é assim que se descrevem.

A Playback esteve à conversa com as três principais cabeças pensantes do colectivo: António Graça (aka LEFT.), Alberto Hernández (aka Luar) e Sara Cruz. Mas não, não nos ficámos por aqui. Fomos também pedir uma mãozinha a Rita Onofre e a Miguel Laureano (aka Choro), que têm acompanhado o crescimento da AVALANCHE desde o início, e a Beatriz Caixinha que, pelo que sabemos, é uma das suas mais recentes aquisições.

Os primeiros passos da AVALANCHE

É em 2020, em pleno contexto pandémico, que começa a história desta AVALANCHE, e permitam-me situar-vos no mapa: António em Lisboa, Alberto em Loulé e Sara em São Miguel. Certo dia, criaram – escusado será dizer –, à distância, uma canção chamada “Rest”, que os conduziu a um dilema: “vamos lançá-la no canal de quem?”, começa por partilhar Sara. “Foi com a “Rest” que nasceu a AVALANCHE; esta ideia de colectivo onde se cruzam caminhos artísticos. Foi a primeira música da AVALANCHE. Foi o primeiro vídeo no YouTube da AVALANCHE”, acrescenta.

Daí em diante, começaram a fazer writing camps, na Great Dane Studios, onde os músicos se conhecem e criam músicas do zero. Na verdade, esta ideia de união musical já pairava na cabeça de alguns intervenientes do projecto, principalmente de António. “Tanto o António, como alguns de nós, sempre tivemos muita vontade de criar um colectivo”, diz Rita Onofre, que se tornou num dos elementos principais da AVALANCHE. Segundo nos conta, já conhecia António há algum tempo, e este guiou-a até ao projecto, acabando por desafiá-la a fazer parte da administração. Durante os meses que ocupou esta função, ajudou “a gerir os writing camps e a pensar em eventuais retiros”, tal como “no processo de desenvolvimento do álbum e no processo de fazer um projecto para candidaturas”. Portanto, a AVALANCHE nasceu, nada mais nada menos, de “uma fusão de ideias que estava no ar”, conta Alberto. “Depois, ao longo do tempo, fomos afunilando e percebendo qual era, de facto, a ideia principal: lançar músicas colaborativas”.

Em conversa com o trio, percebemos que a primeira experiência ficou na memória de todos. “Um dia, o António decidiu juntar uma quantidade absurda de gente no estúdio”, recorda Alberto entre gargalhadas. “Foi um caos, mas foi muito fixe. Foi a prova de que havia bastante potencial. Juntou-se malta que não se conhecia e criou-se um ambiente e uma energia super viciante e contagiante”, complementa António. A partir daí, deu-se a verdadeira expansão de artistas. Chamavam amigos, malta que admiravam e chegaram a fazer open calls.

Recordações do mais recente retiro da AVALANCHE. Fotografia: Ana Viotti
Recordações do mais recente retiro da AVALANCHE. Fotografia: Ana Viotti
Construir canções e criar laços colectivos

Alberto conta-nos que a ideia de criar um álbum surgiu com o passar do tempo, porque o foco era realmente fazer apenas música colaborativa e promover novas experiências e desafios aos artistas. Precisamente por esta ideia de «comunidade» estar tão presente é que o colectivo vai além dos nomes que compõem o disco de estreia, e António deixa isto muito explícito. “Se tu fazes parte de um writing camp, tu fazes parte da AVALANCHE. Mesmo que não lances músicas connosco, fazes parte da rede. Nem que seja só porque conheceste pessoas e depois tocaste com elas nalgum sítio. Nós gostamos de acreditar que a AVALANCHE é isto: é esta energia que liga as pessoas”.

Os feedbacks que recebemos provam isto mesmo. Rita acredita que quem vai para um writing camp, vai declaradamente para “partilhar uma experiência, para mostrar o seu trabalho e para conhecer o trabalho dos outros”. Nas suas palavras, há uma beleza única de “pôr a andar a energia criativa, neste caso na música”. Miguel Laureano, também conduzido até à AVALANCHE por António, conta que o primeiro writing camp colaborativo em que participou mudou a sua “abordagem à música”. É verdade; a sessão onde se juntou a iolanda, Matheus Paraizo e a Inês Marques Lucas, e de onde saiu “Assim”, foi um momento transformador para si. “Na altura, estava numa fase em que preferia trabalhar sozinho sempre que possível, não estava aberto à colaboração, mas depois da sessão tentei logo marcar outras sessões para trabalhar com mais pessoas”, recorda.

Não restam dúvidas que os writing camps são o ingrediente especial desta receita AVALANCHE. Mas como é que funcionam? “No fundo, é um dia em estúdio”, começa por explicar António. “Imagina que somos doze pessoas… A Great Dane tem quatro estúdios, portanto três pessoas por estúdio, por norma um produtor e dois songwriters. Há quatro sessões de manhã. Depois, almoçamos e convivemos. E mais quatro sessões de tarde. No final do dia, ouvimos as ideias das músicas que foram criadas”. Improbabilidade é a palavra-chave no processo de divisão de grupos. “Improvável mas que faça sentido”. Isto passa por unir malta que vêm de backgrounds e géneros musicais completamente diferentes. Sara revela que tentam ter sempre “esta sensibilidade” quando fazem as equipas, acabando por promover uma experiência “divertida” e “enriquecedora”.

O VOLUME I é reflexo disto mesmo. Uma fusão excêntrica de artistas que nos entregam duas mãos cheias de bangers memoráveis repletos de cor e energia. Soubemos que muitas canções ficaram na gaveta, levando-nos a questionar sobre como é feito o processo de curadoria musical. “Na verdade, é muito simples”, começa por revelar Alberto. “Chega uma altura em que sentimos que já temos muito output criativo e, então, ‘bora ouvir o que já se fez até agora. Fazemos uma lista das coisas que nos chamam mais a atenção e que podem resultar melhor num contexto de disco ou single”, remata. Sara acrescenta que há igualmente um cruzamento com a “disponibilidade dos artistas” e “a vontade de lançarem a(s) música(s)”.

É impossível contar a história da AVALANCHE sem falar sobre os Great Dane Studios, onde começaram os writing camps avalanche e, consequentemente, onde o projecto começou a ganhar forma. António conta que trabalha na Great Dane desde 2018 e foi lá precisamente que foi “exposto” a este conceito de writing camp. “De facto, neste aspecto, eles são responsáveis – o Mikkel, neste caso, que é o dono do estúdio -, por eu ganhar este bichinho e perceber que isto é uma cena que se faz, e também pela gentileza de nos permitir fazer estes camps lá”, é com estas palavras que António regista a sua gratidão para com a Great Dane.

Capa Volume I
Capa Volume I

Um dos pratos fortes da AVALANCHE é o facto de tirarem o máximo proveito das ferramentas digitais disponíveis nos dias de hoje. Há uma preocupação em captar momentos dos writing camps, com o intuito de documentar todo o processo criativo. Falamos de making ofs, behind the clips, behind the stems, etc. Segundo Alberto, que afirma ter um “bichinho” pela edição de vídeo e pela comunicação, desde o início do projecto que sempre quiseram ter “uma pegada digital forte” e, hoje em dia, considera ser umas das “frentes de ataque” da AVALANCHE. “É uma cena muito bonita para quem cria e para quem não cria, porque também há um lado didático nisto: para alguém que está a aprender a produzir e/ou a escrever”, diz Alberto.

Explorar novos horizontes

E por esta presença ser tão forte no mundo digital, sabe-se que esta AVALANCHE já anda a cozinhar o próximo álbum e que, recentemente, adotaram uma nova abordagem de writing camp: retiros. Alberto afirma que sempre esteve em cima da mesa esta vontade em fazer retiros, mas que há toda uma “logística” que não facilita a sua concretização. Finalmente aconteceu, e foi em Castelo de Paiva. “É um contexto muito diferente dos outros writing camps. O ambiente mágico, de criação, que se gerou naqueles três dias em que fomos para o meio do nada, numa casa que nem rede tinha… Foi de uma liberdade total”, relembra Alberto. Para Beatriz Caixinha, parece-nos que esta experiência vai ficar para sempre na memória. Ela que ficou a conhecer – e rapidamente a venerar – este grupo durante o lançamento do VOLUME I e que se juntou a convite, claro está, do master (o António, para que não restem dúvidas). “Para mim, o retiro mudou para sempre a forma como eu olho para o meio”, confessa. António não esconde a sede que tem em tornar isto uma prioridade, ambicionando “que aconteça, pelo menos, uma vez por ano”. A AVALANCHE apela muito ao “lado humano”, ou seja, de se conhecerem uns aos outros, e os retiros permitem isso mesmo. Há uma partilha de vulnerabilidade nunca antes vista. “Ficámos todos mega rendidos a esta experiência, eu acho”, diz António.

“Estamos numa fase bué entusiasmante do projecto, estamos a expandir um bocado a equipa, a pedir ajuda, etc. Os últimos anos serviram para espalhar o conceito e lançar canções, isto é, para definir quais as direções a seguir. Agora, está tudo muito mais coeso”, garante Alberto. Com o VOLUME II à vista, António partilha que agora estão mais concentrados em lançar “singles com qualidade”, que é a “grande ferramenta de promoção”, especialmente para um “conceito tão wild” como a AVALANCHE.

Um movimento de partilha e vulnerabilidade

Discutiram-se os prós e os contras de fazer música em colaboração. Sara aponta que existem várias vertentes, mas foca-se essencialmente na parte “espiritual” do conceito. “Há uma beleza em ver artistas a cruzarem caminhos. Há uma beleza no ambiente que sentimos no writing camp. Há uma beleza na felicidade que sentimos depois de uma listening session”. Embalado pelo espírito de “comunidade”, Alberto desabafa que sente que o meio artístico está cada vez mais “individualizado”. “Nos dias de hoje, a malta em vez de juntar amigos e formar uma banda, mais facilmente compra uma placa de som, arranja um programa para o PC e começa a brincar/fazer cenas em casa”, exemplifica. Se isto é melhor ou pior? Ninguém tem a resposta certa. Mas Alberto acredita que há uma beleza fundamental na “partilha” de um processo com outras pessoas, na “troca de ideias” e na “diferença de opiniões”. Rita partilha da mesma opinião e acredita que “há sempre alguma coisa para aprender”. Não hesita em mostrar o amor que encontra na co-criação. “Somos seres humanos. Somos animais sociais. Portanto, está incluído neste pacote de necessidades a vontade de estar com outras pessoas e de podermos fazer aquilo que amamos com elas”.

Ainda assim, António adiciona à equação o “desconforto” inerente a todos estes processos. Há sempre muitas “inseguranças” por parte de quem vai, pela primeira vez, a um writing camp. “Ou não conheço ninguém, ou nunca compus em grupo, etc”. Beatriz Caixinha, por exemplo, não esconde o “nervoso miudinho” que sentiu no primeiro encontro, mas derivado da “sensação de competitividade e comparação” que existe no meio. Mas a verdade é que a AVALANCHE teve o poder de mudar a sua perspectiva “sobre o que é fazer música colectivamente sem que os egos sejam uma prioridade”.

Recordações do mais recente retiro da AVALANCHE. Fotografia: Ana Viotti
Recordações do mais recente retiro da AVALANCHE. Fotografia: Ana Viotti

Para os seus trabalhos a solo, António, Alberto e Sara levam muita bagagem da AVALANCHE. “Conheces malta nova, trabalhas com pessoas que, se calhar, não trabalharias noutro contexto, etc”, diz Alberto. Quem dispensar meia-hora do seu tempo para ouvir, com atenção, o VOLUME I (prometo que vale mesmo a pena!), capta facilmente uma química e uma cumplicidade musical que não encontramos todos os dias, e que parece que duram há anos – o que nem é o caso. Alguns já se conheciam. Outros aproximaram-se de forma exponencial. O trio partilhou alguns casos: Alberto e iolanda já se conheciam, mas com a AVALANCHE a ligação foi restaurada, e Alberto acabou por entrar no EP de estreia de iolanda, Cura, enquanto produtor. Inês Marques Lucas e Choro conheceram-se durante os writing camps avalanche, levando Choro a produzir o álbum de estreia, Horas Mortas, de Inês [Marques Lucas]. “Se a AVALANCHE não existisse, muito provavelmente não tinha produzido o álbum dela”, revela Miguel. O mesmo sucedeu com INÊS APENAS que chamou NED FLANGER para o seu EP de estreia, Leve(mente).

Para Rita e Miguel, a AVALANCHE teve igualmente um forte impacto a nível artístico. Rita toca na questão de um maior alcance de público a partir do momento em que se faz música colaborativa. “O público de outros artistas que estão no álbum acaba por me ouvir e, muitas vezes, acaba por chegar ao meu trabalho a solo”, diz. Já Miguel encontrou no colectivo um equilíbrio criativo. Entre processos criativos individuais e colectivos, conta que foi percebendo os seus “limites” e, consequentemente, o que “funciona melhor” para si e para o “produto final” neste tipo de sessões. Continua portador de “uma identidade própria”, mas admite que, graças a estas experiências, não deixa de “beber muito” das pessoas com quem trabalha e troca ideias.

Ao vivo, o colectivo já se estreou no Tokyo Lisboa e no Musicbox – e não, não pretendem ficar por aqui. Não só querem continuar, como procuram levar o projecto a “outros sítios do país”, mesmo que seja “uma daquelas frentes que é muito complexo fazer acontecer pela quantidade de malta que faz parte”, revela Alberto. O que ninguém tira a esta AVALANCHE é o emblema de exclusividade. “Uma apresentação ao vivo AVALANCHE vai ser sempre uma cena muito exclusiva, tendo em conta a quantidade de convidados que sobem ao palco e o jogar com os schedules de todos os artistas”, afirma Sara.

AVALANCHE no Musicbox. Fotografia: Ana Marques
AVALANCHE no Musicbox. Fotografia: Ana Marques

No fundo, é rara a existência de projectos, em Portugal, que rondam “em torno destes ideais”, como diz Beatriz, algo com que todos concordam. “Aquilo que senti [nos writing camps e no retiro] é difícil de explicar. Acho que quando vemos coisas tão bonitas de fora é difícil não soar sempre um pouco pretensioso, mas a verdade é que o amor mútuo pela música, respeito e partilha de amizade que existe neste grupo é muito real”. Alberto olha para a AVALANCHE mesmo enquanto refúgio. Uma “casa” onde o foco é abstrair-se dos problemas à sua volta e empurrar todas as energias para a criação.

Ao fim e ao cabo, a partilha e a vulnerabilidade entre artistas desempenham papéis cruciais na criação de trabalhos verdadeiramente excepcionais. Neste universo de colaboração, artistas entrelaçam-se numa dança de criatividade, onde a autenticidade é a moeda de troca, formando-se uma narrativa colectiva que transcende as fronteiras individuais. A vulnerabilidade torna-se o elo emocional que une as mentes criativas, promovendo um terreno fértil para a inovação e a exploração artística. Neste espaço partilhado, as barreiras entre egos desvanecem-se, criando uma atmosfera propícia para a troca de ideias e a colaboração profunda. A AVALANCHE é um projecto que não cria apenas música, mas também cria laços humanos, construindo uma comunidade de almas abertas à exposição mútua e à criação de uma sinfonia única e ressonante, onde a beleza é encontrada na coragem de se mostrar vulnerável diante da arte sonora e de outros artistas.

Fotografia de destaque: Ana Marques

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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