Em Portugal, o ano de 2023 na música ficou marcado por dois momentos. O primeiro remete-nos para o hip hop. Após anos e anos a crescer em popularidade, o género nascido no Bronx, Nova Iorque, no início da década de 70, que em Portugal se edificou a partir das periferias das metrópoles, assumiu-se definitivamente como a nova pop no nosso país. Em particular, os nomes de T-Rex e Slow J, com COR D’ÁGUA e Afro Fado respetivamente, bateram recordes e encheram salas. O segundo remete-nos para como a margem, adufes, olarilolés ou bombos se (re)imiscuíram numa suposta “nova pop” em construção – com resultados mais ou menos interessantes. Culpem quem quiserem por isso.

O nome de Riçaalias artístico de José Leal – é um caso curioso da ligação entre estes universos. A sua história encontra-se ligada ao hip hop portuense. Começou a rimar com os amigos na periferia da Cidade Invicta e há cerca de uma década gravou os seus primeiros sons. Porém, só em 2016 colocou o primeiro projeto cá fora – o eclético EP Bicho Com Mau Gosto, editado na altura pela Microfome. Apesar de dois singles lançados em 2019 – “Dragão IV” – e 2020 – “Napoleão Precário”, o mundo precisou de sete anos para escutar um novo lançamento com pés e cabeça do artista de Gandra, cidade localizada no município de Paredes.

Editado no passado mês de setembro pela Biruta Records, Diabos m’ Elevem é a estreia no formato de longa-duração de Riça e tornou-se imediatamente num dos discos do ano. A génese do disco é no hip hop melódico, mas o storytelling de José e os instrumentais – construídos com a ajuda de zé menos – levam-nos para um local de margem (“Dragão IV” já dava pistas para isso) que nem é campo, nem cidade. É, sim, um imaginário de “purgatório”, como o próprio o define, construído por barras incendiárias, atmosferas negras, inseguranças e responsos, e cantares tradicionais resgatados dos arquivos de Michael Giacometti.

Para a última Playback de 2023, ligamos a Riça para discutir o universo de Diabos m’ Elevem, conversar sobre o impacto da gentrificação no hip hop portuense, repensar a música de baile e a inclusão de melodias da música tradicional portuguesa na contemporaneidade.

Capa Diabos m' Elevem
Capa Diabos m’ Elevem
Como foi a viagem do teu primeiro EP, Bicho com Mau Gosto, até Diabos m’ Elevem? No EP, já tinhas faixas em ambiência – como a “Monolito” – e em temática – a “É Lá Na Bouça – que pareciam antecipar as experimentações do teu primeiro álbum. Depois, a “Dragão IV”, que lançaste em 2019, incorporava samples e elementos sonoros de música tradicional portuguesa. Como evoluiu, ao longo destes sete anos, o conceito deste Diabos m’ Elevem?

É curioso falar do EP e de poder existir uma certa génese nele para aquilo que está neste disco. A “É Lá Na Bouça” é o mais óbvio porque estou a falar das minhas raízes e do sítio mais ruralizado de onde venho e tudo o mais, mas a “Monolito” pode ser interessante precisamente por causa dessa coisa de criar aqui uma história à volta de algo que não é assim tão óbvio. Acho normal, independentemente do disco que estás a fazer ou do que fazes a seguir, existir certas características tuas, há certas características tuas, sejam elas artísticas ou de personalidade, que são constantes. Isto é transversal a outras coisas que faço como ilustração ou banda desenhada. Eu gosto de contar histórias e sempre curti de misturar a realidade do dia a dia com algo mais mágico. Isso vem muito de ler Saramago, por exemplo, ou autores sul-americanos, em que existe muito essa coisa de misturar o banal com algum elemento mágico ou sobrenatural. Também me inspirei bastante em Twin Peaks, sobretudo para o videoclipe da “Dragão IV”. Na altura do EP, também não me sentia confiante para produzir algo do início ao fim – daí todas aquelas variações de sonoridade. Mas já na altura, lembro-me de ter alguns samples que andei a recolher de coisas que achava que podiam ser interessantes de utilizar no futuro. Lembro-me de ter alguns samples dos Adiafa, do Conjunto António Mafra, do Trio Odemira, mas era muito difícil para mim, na altura, conseguir fazer algo com aquilo. Portanto, nessa altura já havia assim algumas sementes lançadas.

Pela descrição que deste ao Rimas e Batidas na altura, o EP foi feito de uma forma algo caótica. O processo por trás de Diabos m’ Elevem foi mais pensado? Porque existia um objetivo em concreto de como contar estas histórias.

O EP saiu numa fase em que me queria lançar, estás a ver? Eu já escrevia há bastante tempo, mas não sentia que tivesse um corpo de trabalho cá fora como outros pares meus da altura, como o Kap – agora zé menos. Então, as faixas do EP são várias coisas que tinha escrito ao longo do tempo. Algumas delas eram para entrar em EPs ou mixtapes de outras pessoas, e não entraram, e é por causa disso que aquilo é uma salgalhada com vários beatmakers e amigos. No álbum, por outro lado, existiu a preocupação de fazer algo que tivesse um caminho. E o caminho para o álbum começa em 2014 – já disse isto em várias entrevistas – quando um amigo meu, o Luís Monteiro, num acampamento do Bloco de Esquerda, falou-me do João Aguardela e do projeto Megafone. Na altura, não ouvia muito além do rap, mas acabei por ouvir e perceber melhor o que era. Claro que algumas coisas não me entraram logo à primeira, mas lembro-me de ter achado todo o exercício interessante, de agarrar em música folclórica, que não é algo que maior parte das pessoas adoram, e transpor para algo que comunique melhor com as novas gerações, com a malta que lida mais com música urbana, cultura noturna e por aí fora. Essa foi a premissa para trabalhar o álbum. A partir daí, foi selecionar e filtrar as ideias e encontrar padrões para que no final o disco fosse um corpo de trabalho sólido.

O zé menos, pelo que percebi, teve um papel muito importante a ajudar-te a organizar as ideias para o disco.

As canções finais, sim. O Zé entrou já numa fase em que eu já tinha as coisas muito concebidas, primeiro como engenheiro de som, mas depois como… chamemos-lhe coprodutor, responsável pela direção musical–

Produtor executivo?

Já discutimos muito isso [risos]. A certa altura, na minha cabeça, era isso, mas depois alguém disse que o produtor executivo era o gajo que entrava com o dinheiro e organizava as coisas. Eu fiz-lhe o convite para me ajudar a fazer o álbum porque, a dada altura, senti que ia ser muita coisa para conseguir fazer sozinho. Até pode haver algum mérito em fazer tudo sozinho, mas não és pior se trabalhares com alguém, percebes? Duas cabeças pensam melhor do que uma. Por exemplo, a “Mulher do Diacho”, que ao início até se chamava “Femme Fatale”. Eu e o Zé discutimos muitas vezes se essa música se encaixava no disco porque as drums e as percussões não estavam totalmente alinhadas com o resto. Então, levei aquilo para casa e reinventei um bocadinho os ritmos. Depois disso, ficamos os dois de acordo. E ainda bem que fizemos esse tipo de mudanças. O Zé também ajudou muito com as vozes e coros porque ele estava muito mais habituado do que a fazer isso devido ao último disco dele [o chão do parque].

De que forma evoluiu a tua relação durante a criação do álbum?

Já conheço o Zé mais ou menos desde o secundário por intermédio de amigos, mas nunca foi uma coisa muito assumida. Isso foi mais ou menos quando ele lançou o EP anterior ao Do Nada Nasce Tudo. Depois, ele convidou-me para fazer a capa do Do Nada Nasce Tudo e ficamos mais próximos com isso, mas só senti que se desenvolveu uma amizade a sério um pouco depois d’o chão do parque sair, em 2019, porque começamos a falar mais e eu comecei a ir lá algumas vezes ao estúdio dele gravar um single ou outro. Com o álbum, eu e ele criamos uma rotina. Stems, vocals, cigarrinho, retomar. Foi assim que trilhamos o disco. Houve sessões em que estivemos mais numa de conversar e trocar ideias do que propriamente estar a partir pedra. Sinto que essas sessões foram muito importantes, não só para a nossa relação de amizade, mas também para deixar algumas ideias a maturar e repensar outras. Sem dúvida que foi um processo muito giro.

As canções deste Diabos m’ Elevem são canções com muitos detalhes. Como foram construídas em estúdio? Camada a camada ou saíram de rajada?

Por limitações minhas foi mais de rajada. O Zé é de Gaia e eu neste momento moro em Ermesinde. Não é uma deslocação propriamente fácil. Portanto, não nos podíamos dar ao luxo de experimentar muito. Se quiséssemos alterar algo numa música, tinha de ser discutido nas duas ou três horas seguintes porque as ideias tinham de ser todas trabalhadas no período em que conseguíamos estar ambos em estúdio. Por um lado, foi um desafio interessante porque exigiu mais de nós em termos de disciplina. Por outro, gostava de poder ter a experiência de ter a liberdade de estar em casa, pegar num bombo, e ir gravar. Relativamente às músicas, não surgiram todas de forma igual. Houve músicas, como a “Fechai o Jazigo”, em que escrevi a letra primeiro, fruto de algo que me aconteceu – neste caso, o funeral de um familiar meu. Depois, como eu no início não sabia bem o que queria dizer – apenas como o queria dizer –, os instrumentais surgiram primeiro como a base para tentar encontrar os ambientes e as atmosferas que condicionam a minha escrita. A partir daí, o exercício foi revisitar algumas memórias para construir as narrativas. Umas coisas mais traumáticas, outras menos, mas com a ideia de existir sempre uma ligação com o meu passado em Gandra, Recarei ou Astromil, e como isso moldou os meus pensamentos. Não falo muito no disco de fases como quando andei a estudar no Porto, por exemplo.

Relaciono-me muito com o que estás a dizer porque também venho de uma terra que nem é bem campo, nem cidade. É aquele meio termo estranho, nem sei bem o que lhe chamar–

É o purgatório [risos].

[Risos] Vou-te contar uma história. Eu raramente trouxe amigos à terra de onde sou, mas em agosto dois vieram-me buscar para irmos a Paredes de Coura e uma comentou algo desse género também. Isso, e que havia muitas igrejas e capelas [risos].

Também há aquela cena curiosa que não sei se há na tua terra também, mas na minha havia: uma zona com muitos prédios em que era só mato à volta. As estradas também não eram propriamente estradas.

Isso é quase a descrição da rua onde cresci [risos].

Pronto. No caso de uma aldeia, ou até de uma vila mais pequena, as coisas são muito próximas umas das outras e cria-se um certo sentido de comunidade por causa dessa proximidade. Toda a gente se conhece. Numa cidade, isso não acontece. É mais impessoal. Mas depois tens todo um outro contraste. Tens muita coisa a acontecer. No meio disto tudo, há esse sítio um bocado estranho, que é uma espécie de dormitório, onde as pessoas só vão para dormir. Portanto, fora das casas, não existe grande vida à exceção da altura das romarias. Se tivesses crescido no campo, se calhar tinhas mais coisas com que te entreter, como subir às árvores, mas os teus amigos não faziam isso. O que o pessoal fazia era ir para bares um bocado rascas com determinados objetivos em mente. Era para aquilo e ‘tá-se bem. Eu nunca me encaixei muito nisso. Por isso é que a certa altura quis sair dali. Não encontrava nada.

Relaciono-me a 100% com o que dizes, mas já regresso a esse tema. Em termos técnicos, que evolução notaste no teu game do teu primeiro EP para este disco?

Em parte, acho que foi evolução natural. Cresces, ouves mais coisas e começas a ganhar uma maior plasticidade para fazeres o que queres. Para fazer o Diabos m’ Elevem, o que sinto que mudou foi a minha capacidade para compreender o desafio que tinha pela frente e conseguir adaptar-me a isso. Fazendo uma metáfora com a ilustração: se me pedirem para fazer uma ilustração para um álbum que é bué denso, negro, whatever, penso: a que tipo de técnicas posso recorrer para expressar isso? Primeiro, limitar a paleta cromática. Depois, há certos tipos de tinta mais indicados para essa tarefa e o próprio pincel também importa. Apliquei essa lógica ao álbum. Tinha a ideia de falar sobre a ganância numa família e perguntei-me: que tipo de cores posso utilizar? Que tipo de percussões? Que tipo de recursos estilísticos ou musicais posso utilizar? Um reverb aqui na voz, um delay, uma distorção… Ou seja, tive a capacidade de pensar plasticamente as músicas independentemente do que estou a dizer lá. Foi aí onde senti que cresci mais. O facto de estar a trabalhar com o Zé em estúdio também fez toda a diferença. O primeiro EP foi gravado com o Lazy e foi de uma só assentada. Com o Zé, o processo de gravação foi mais experimental. Mesmo com o pouco tempo de estúdio que tínhamos, experimentamos várias vezes até sair alguma coisa. Por exemplo, as harmonias. Experimentamos muito com harmonias e aprendi bastante com o Zé sobre isso.

Falando de melodias, os refrões presentes neste disco são interessantes. As canções de Diabos m’ Elevem são densas, mas arranjas na mesma forma de apresentar um refrão que fica na cabeça, como é o caso da “Canção das Maias” ou da “Ponte de Babel”. Além disso, é como se esse momento, o refrão, fosse a moral da história contada pela canção.

O refrão é simplesmente um momento na música que, como dizes, é mais chamativo. Há um motivo melódico em torno daquilo e acho que foi aí que pude explorar um pouco mais a noção de tradicionalidade aplicada à voz. Quando estás a fazer rap, nunca te vai soar propriamente tradicional exceto se falarmos de algo como um corridinho, uma desgarrada, ou o “FMI” do José Mário Branco, que tem uma cadência muito particular. O refrão surge para a música não ser só uma coisa estranha. Mas também não queria que tivesse uma estrutura quadrada – nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Foi muito interessante trabalhar a estrutura das canções e sinto que ainda tenho algum caminho por explorar nesse departamento. Havia músicas em que senti que não havia necessidade de refrões, mas depois acabei por colocar lá alguma coisa para rematar. Por exemplo, a “Fechai o Jazigo”, aquilo só tem um refrão – e não sei se lhe podemos chamar refrão porque não se repete, é só uma ponte ou uma outro. Alguns dos refrões foram também trabalhados com o zé menos, sobretudo refrões em que tive mais dificuldade como, por exemplo, a “Rato do Campo & Rato da Cidade”. Gosto de fazer refrões porque acho um desafio interessante esticar o meu lado mais melódico. Não sou propriamente um cantor no sentido mais convencional – considero-me muito mais rapper – e é nesse momento em que posso esticar um pouco mais a corda, para ver até onde é que vai o meu range e o que consigo fazer de interessante com as minhas limitações vocais.

Como foi construir a identidade gráfica do disco?

O design gráfico do álbum foi a última coisa a surgir porque estive muito tempo a experimentar formas de traduzir a música para uma imagem. Passei bastante tempo a pensar não só na capa, mas também no tipo de letra que ia usar nos cartazes e nas cores. Tinha de existir alguma coerência. Inicialmente, a minha ideia não era ser eu a fazer. Curtia que tivesse sido um artista plástico aqui do Porto, o Miguel Carneiro da Oficina Arara, a fazer a capa. Mas por constrangimento da minha parte e decisões relativamente ao budget, não deu para avançar e acabei por fazer eu. Depois, as máscaras da Diana Queirós surgiram fruto das conversas que tivemos mesmo antes de eu fazer a capa e que, em certa medida, a inspiraram. No fundo, a ideia era ir beber à imagética do universo tradicional português. Foi a partir daí que a coisa se desenvolveu. E ainda sinto que há coisas interessantes a fazer com isto.

Riça por Mestria
Fotografia: Mestria
A inclusão de elementos fantásticos na tua obra é interessante de analisar porque outros artistas fizeram-no recentemente: os Glockenwise com o Gótico Português, o ben yosei com o lagrimento, o novo disco do Conjunto Corona [ESTILVS MISTICVS], o filme Restos do Vento do Tiago Guedes. Porque achas que tantos artistas diferentes sentiram a necessidade de explorar estes tons e estéticas neste momento?

Não sei dizer, mas acredito que haja alguma coisa que despoletou isto. É interessante porque essas abordagens não estão propriamente impregnadas num determinado género. Vamos supor que, agora, todos os rappers começavam a fazer música tradicional portuguesa. Aí, conseguimos traçar mais facilmente a origem. Neste caso, não sei mesmo explicar. Os próprios Conjunto Corona e o David Bruno já exploram a portugalidade desde 2015, 2016. O David tinha uma página no Facebook, que se chamava Reviews de Tudo, em que ele escrevia sobre coisas que me lembravam da minha infância. Depois, tinhas o Pedro Mafama. Lembro-me de ouvir a “Jazigo” e sentir isso também. Durante a pandemia, apareceu a Ana Lua Caiano. Antes disto, tiveste os Diabo na Cruz, os Deolinda. Portanto, isto não é um fenómeno de agora. Está a acontecer com mais intensidade agora. Sempre tiveste artistas a abordarem este universo. Agora, mais tarde ou mais cedo, isto também se esgota um bocado. Mas a abordagem que tens ao universo importa. Pode ser mais supérflua ou fazer parte da sua génese. Há malta que se calhar vai fazer um disco com música de baile e depois vai partir para outra. E é tudo válido.

Isto é uma temática muito interessante. Durante muitos anos, houve uma desvalorização de uma certa classe deste universo, seja o da música tradicional portuguesa, seja o da música de baile.

Sim, sem dúvida. Outro fenómeno interessante é o do José Pinhal. Ele não é assim tão diferente de umas quantas centenas de cantores de baile que a certa altura existiam em Portugal. Também é interessante pensar em artistas como um Toy, por exemplo, ou outros semelhantes, que há uns anos eram vistos como parolice ou baixa cultura – e não é que seja alta cultura atualmente – mas o pessoal leva agora aquilo com outra ligeireza. Dá para cantar e dançar, e a seguir podes ouvir jazz na mesma e está tudo bem. O curioso é que esses músicos que a malta descarta muitas vezes têm excelente formação musical.

O caso do Emanuel, por exemplo.

Exatamente. Vi há uns dias um debate no RTP Arquivos sobre a música pimba. Não sei bem precisar de que ano é o debate, mas aquilo é dos anos 90 e deve ser pouco após sair a música do Emanuel [a “Pimba Pimba”]. Nesse debate, o pessoal está a questionar o pimba e é curioso. Trinta anos depois, o que tu ouves nesse debate não é muito diferente do que ouves hoje em dia sobre um LON3R JOHNY da vida ou um Chico da Tina. Mas está-se bem, o pessoal curte.

A RTP também tinha um programa que falava bastante de música pimba… Não me estou a lembrar do nome [o programa chamava-se Made in Portugal].

Sim, o apresentador desse programa aparece nesse debate, mas não me estou a lembrar do nome dele [o apresentador do Made In Portugal era o Carlos Ribeiro]. Esse programa e esse senhor foram os grandes impulsionadores da música pimba nos media da RTP. Era uma espécie de Top+ do Pimba, se não me engano.

Vou pesquisar o nome a seguir. Mas o caso do Toy é engraçado. Vi o Toy recentemente ao vivo e notas que, em comparação com há uns dez anos, tens um público diferente, que já não é só aquele público que era visto como “labrego” – não que alguma vez fosse. Agora, tens malta ali a curtir que depois vai ouvir um disco do Chet Baker, por exemplo.

Acho que é natural as coisas terem evoluído assim porque a certa altura tinhas muito a coisa das tribos. O pessoal separava-se muito e não se misturava. Imagina que tu és do metal e eu sou do rap. Se calhar antes, fechava-me muito mais e não te ia conhecer porque não estava para ouvir as tuas coisas. Hoje em dia, se calhar até fazemos alguma coisa juntos. Uma coisa não invalida a outra. Não é porque vais à romaria às 10 da noite ouvir o Toy que não podes ir a seguir para o club ouvir Regula, por exemplo. É válido, man. Tem a ver com os teus gostos, com o mood em que estás, com aquilo que queres ouvir.

Este disco começa com um statement – “Quem me leva desta terra? / Vem depressa, alma pesa”, na “Alma Penada” – e termina com a “Fechai o Jazigo”, que é uma espécie de: it is what it is. Este disco ajudou-te a aceitar o teu percurso pessoal?

O disco serviu, em certa parte, como terapia. Cheguei a ir ao psicólogo várias vezes, mas a certa altura tornou-se incomportável financeiramente. E isto é cliché, mas encontrei muitas vezes na escrita e na arte algo para lidar com a minha existência. O disco também está ligado à experiência que tive com a minha família. A “Fechai o Jazigo”, por exemplo, é sobre o meu avô paterno, mas também é uma reflexão sobre aquilo que tu fazes em vida e o que fica. Curiosamente, a “Alma Penada” e a “Fechai o Jazigo” – que são a primeira e última respetivamente – são um ciclo que se completa. Se terminares de ouvir a “Fechai o Jazigo” e voltares a ouvir o disco, regressas à “Alma Penada”. Ou seja, alguém morreu, vai parar ao purgatório, e está à espera de saber se vai para o inferno ou para o céu. Por contraste, os assuntos que ficaram por resolver, em vida, impedem-te de ires para o paraíso ou para o inferno. Tens de voltar cá baixo para os resolver. Eu falo no disco sobre a cena de nunca me sentir realizado. Se morresse agora, estaria satisfeito com o que tenho ou ainda precisaria de mais? Todo o Diabos m’ Elevem é um pesar constante entre as coisas em que vale a pena gastar energia e o que não vale.

Falamos do Conjunto Corona. O dB abriu para ti em 2016, quando apresentaste o EP no Plano B, e o Logos [Edgar Correia] é irmão do Rui [Correia] da Biruta, responsável pela edição do Diabos m’ Elevem. Falaste alguma vez com eles sobre os vossos discos? Porque ambos abordam temáticas como a bruxaria, o paganismo…

O David na altura do meu primeiro EP disse-me que um dos próximos discos de Corona seria sobre religião. Entretanto, saiu o Santa Rita Lifestyle

Que é um bocadinho sobre religião.

Sim. A minha dúvida sempre foi se o disco que o David me tinha falado era o Santa Rita ou não. Quando eles lançaram o G de Gandim, também não sabia o que fariam a seguir. Devido à narrativa da vida do Corona, senti então que o tema tinha sido abordado no Santa Rita Lifestyle. Mas acho que era inevitável que o tema da portugalidade regressasse aos Corona pela ligação do David e do Edgar com esse universo. Eu já conheço o Edgar desde os Ollgoody’s, mas ficamos mais próximos quando ele se lançou enquanto MONA LINDA. Não me lembro se foi o Zé ou o Edgar, mas um deles falou do disco de Corona e de como ia abordar temáticas místicas e de bruxaria. É fixe que exista o meu disco e o disco de Corona ao mesmo tempo. O meu é mais introspetivo, nostálgico e ficcionado e o deles mistura o dia a dia com bruxaria e vai buscar referências de gajos específicos de Gondomar ou de Baguim do Monte.

A “Napoleão Precário”, que lançaste em 2020, fala sobre a precariedade no Porto. Como surgiu?

Essa música surgiu enquanto trabalhava no Diabos m ‘Elevem porque senti a necessidade de que devia colocar cá qualquer coisa cá fora para não ficar totalmente em silêncio. Atualmente, fala-se bastante de habitação e especulação imobiliária, mas ali por volta de 2018, 2019, já se falava bastante disso. De estarem sempre a abrir hostels novos, de existir alojamento local em todo o lado e as pessoas não terem sítio para morar ou para morar com uma renda acessível. Entretanto, houve o boom da Uber e da Uber Eats. Eu sabia que queria fazer uma música sobre a questão da habitação no Porto, mas depois desenvolveu-se para falar também sobre esses temas porque um amigo meu, que trabalhou como estafeta na Uber Eats durante uns tempos, contou-me histórias surreais. E a música acabou por ficar com 11 minutos. Podia ter sido mais curta, mas senti que tudo o que estava ali era necessário para que, quando chegasse o final da música, ser ainda mais catártico. Enquanto rapper e artista, também foi algo que tirei da checklist [risos], de fazer um storytelling gigante e épico como a “Sofia” do Sam The Kid.

O hip hop e a área metropolitana do Porto sempre tiveram uma ligação forte – pense-se nas noites no antigo Hard Club, por exemplo. Com a gentrificação da cidade, que mudou na relação do hip hop com a cidade?

Boa pergunta, mas não sei a resposta. Na altura, o que vivi em termos de hip hop não é como experiencio o hip hop agora. Quando era mais novo, estava muito preso aos convívios de secundário na rua e na noite; agora, é mais à base de consumir discos e ir a eventos específicos. Na minha experiência, as coisas estão muito mais fraturadas em vários locais, mas isso não significa que a cena do hip hop, no Porto, esteja assim como eu a vejo. Tens malta muito mais nova que eu que se junta para sessões de improviso. Por exemplo, a Rádio Milhafre, ali na altura da pandemia, juntava malta em alguns sítios para isso. No geral, o hip hop está mais profissionalizado do que nunca. Quando digo profissionalizado, não digo viver do hip hop. É fazer as coisas de maneira mais profissional e bem feita. Depois, tens eventos como o Natal do Marginal, que são importantes para a cidade. Existem lojas como a NorteColor que dinamizam eventos sobre street art. Não sinto de todo que a coisa esteja mal, ok? Há muita gente que diz que antes é que era e não é bem assim. É o que é. As pessoas que cresceram no início dos anos 2000 a fazer o hip hop hoje em dia têm quarentas, cinquentas, e já não contribuem como contribuíram na altura. Isso influencia como as coisas são feitas.

Com quem gostavas de colaborar no futuro?

Há nomes do rap com quem gostava de trabalhar, mas tenho pensado mais em nomes fora do rap por uma questão de aprendizagem. Há pessoas que eu gostava, mesmo que não se chegue a concretizar uma música ou a fazer algo de raiz, de pelo menos conhecer e aprender alguma coisa. Gostava muito de poder trabalhar com grupos ou com as pessoas do Retimbrar, por exemplo, com os Criatura ou com a Ana Lua Caiano. E continuar a trabalhar com o Zé, obviamente. Estou a dizer esses nomes para lançar as sementinhas ao universo, a ver se surge alguma coisa [risos]. E há outro com quem já falei, o Rui Rodrigues, que é um músico – sobretudo baterista e percussionista – de Guimarães. Ele em 2016 editou um disco muito fixe chamado Portugal Velho.

Apresentaste o disco em Lisboa, na Musa de Marvila, recentemente. Que tens reservado para 2024?

Estou a tentar terminar um lyric video para a “Mulher do Diacho”. Deve sair algures no primeiro trimestre de 2024, mas depende do que conseguir desenhar até lá. Depois, há mais umas coisinhas interessantes que hão de ser comunicadas a seu tempo.

Gostavas de apresentar o disco em Gandra?

Sim, seria muito interessante. Só não sei onde. Não há bares com concertos como tens, por exemplo, um Maus Hábitos no Porto. Podia ser numa romaria, há uma ou outra música que faria sentido, mas seria estranho tocar ali uma música como a “Fechai o Jazigo”. Uma romaria é um local de festa e essa música é sobre um funeral [risos]. Mas era um fechar de ciclo engraçado. Como Gandra, há outros sítios onde curtia experimentar tocar. Se não, ficas preso nos palcos do costume. Muitas vezes, a malta perde por não se abrir a coisas menos óbvias. Agora, já é tranquilo um rapper ir a tocar a uma romaria, mas há uns anos não era. Esse convite, se calhar, nem existia. Além disso, os próprios rappers não queriam ir tocar a esses locais porque achavam que não iam ter público lá só para os ver.

Mas agora o hip hop está tão popular que já não existe um local sem público para esta arte.

Hoje em dia, tens de ser capaz de ir a sítios menos óbvios, como Montalegre ou Lamego. Tens lá malta que ouve rap e podes ser surpreendido. A verdade é que Portugal não é muito grande. Ao contrário de França ou Estados Unidos, não consegues fazer carreira só a dar concertos porque não tens assim tantas casas onde tocar. No Porto, tens duas ou três; em Lisboa, o mesmo. E depois? Tens Braga, Algarve, Aveiro – mas é só. É preciso começar a olhar e ir tocar ao interior para ajudar a dinamizar esses locais e circuitos fora do litoral.

Fotografia de destaque: Mestria

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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