Amigos, lá os tinha. Saíam depois das aulas, de refrigerantes e snacks não aconselháveis e lá vagueavam pela cidade até às horas de recolher decretadas pelos pais ou até estes os levarem para casa. Se se identificava com eles? Não necessariamente Pelo menos, não da maneira que este desejara. Mas divertimento e conexão emocional não precisam de estar estritamente ligadas. Mesmo que ideologicamente e ao nível de interesses divergissem drasticamente, lá passavam os dias. A escola, com a sua natureza rotineira e excruciante, lá o deixava alienado, o suficiente para passar às disciplinas e no futuro pouco pensar, pois esse assusta.
Paixões? Ainda escondidas e com outras antigas ainda a sobreporem-se. Por influências de colegas e dos contextos sociais onde estes se encontravam, começou a entrar no hip hop, que roubava o lugar ao numetal genérico e rock chiclete que ouvia, depois de já se ter perdido nos dubsteps e EDMs ao entrar no ensino básico. No hip hop, andou muito pelo tuga. Do gangster rap aos clássicos que lhe recomendavam amigos mais velhos. Migrou para o americano, onde do pop rap aos mais aclamados, entrava em novas estéticas e trends que desconhecera até então – redes sociais não lhe diziam nada. Ao navegar pelas internets, no que era, até então, uma travessia muito primordial de descoberta musical, encontra um remix de um hit de 2009, num daqueles canais de Youtube temáticos que liberam músicas, muitas vezes isentas de copyright. Vicia nesse remix – que hoje em dia, vê quase como execrável – e decide investigar o autor da música original, que sente já conhecer, talvez de ter ouvido na rádio quando era mais novo. Eis que descobre a pólvora com que acende uma chama, cujo apagar parece não chegar.
Obceca com o repertório do artista. Sente que este fala diretamente para si. Música deixa de ser somente entretenimento ou algo proporcionador de ambiência. É tratamento, é compreensão, é ligação. Ligação esta que nada, nem ninguém, até então, lhe teria proporcionado. O que antes via pessoas fazerem por boybands já não lhe parecia tão descabido. Hoje em dia, ao relembrar-se desses tempos de gatekeeper desenfreado, cora de vergonha ou embaraço – mas continua a reconhecer a génese que lá ocorreu. Acompanha o músico ano após ano. Sofre com as amarguras dele, numa altura em que o artista entra num êxodo público para enfrentar os seus demónios. Espera que este regresse. Festeja qualquer aparição online. Qualquer lançamento, nem que seja um tweet ou uma foto. Quando, aos poucos, tudo parece estar melhor, os sorrisos esboçavam-se de orelha a orelha. Um álbum sai. Torna-se rotina ouvi-lo. Um dia, ao navegar pelo Youtube, vê que um careca de óculos que dá as suas opiniões sobre música lança uma review sobre o disco. Já o conhecia, mas não gostava muito dele por pura cegueira de um dia não ter gostado de uma crítica que fez ao seu artista favorito. Mas naquela review não. Adorou-a. Tirou-lhe as palavras da boca. Todo o amor e obsessão que nutria pelo disco foram apalavrados por outro melómano a dois oceanos de distância.
O que aconteceu naquele momento foi outra génese. Outra pólvora que acende outra daquelas ardentes e (ainda) infindáveis chamas. Já perdia muito tempo a explorar música. Tinha um arsenal já bem composto e diverso de ídolos musicais. Lia umas coisas, investigava outras. Mas o vídeo fê-lo explorar outro repertório que abriria horizontes. O deste tal indivíduo que articulava tão bem o que sentia sobre música. Cada vídeo perfazia novos sons, novos géneros, novas vozes por onde se começara a perder. Começou a achar piada a esta brincadeira de pontuar discos. Tentou encontrar um sítio onde pudesse fazê-lo e, ao mesmo tempo, dar as suas opiniões. Descobriu o AOTY, mas, devido a um incompreensível nervosismo e timidez, não criou conta no site. Utilizou-o simplesmente para descobrir música. Enquanto isso, teclava sobre blocos de notas as suas primeiras críticas de discos – hoje tidas como abomináveis. Entretanto os anos passaram e numa fria passagem de ano decidiu criar conta e começar a partilhar “publicamente” as suas escritas.
Enquanto se vai afundando na melomania internáutica, bebendo muito do que vê nesta tão plural comunidade, descobre discos que não se encontram nas principais plataformas de streaming. Eis que descobre mais uma pólvora. O Bandcamp. Outro oceano por descobrir. Fascina-se pelos discos que lá se encontram e que descobre via AOTY (ou Rate Your Music, que também acabaria por entrar na equação), mas depressa percebe que a plataforma tem já a si integrada uma comunidade de escribas a rastrearem o que de interessante por aí se faz – o Bandcamp Daily. Explora mais um quadro melómano. Motiva-o ver amigos a escreverem para lá. O submarino afunda mais um pouco. Já não há género que lhe faça frente. O desconhecido, percebe-o como infinito e é mais além para onde quer caminhar. De projetos acústicos de black metal, a bootlegs de concertos de bandas que nunca gravaram em estúdio, até tentar compreender as problemáticas da comunidade de drum & bass atmosférico, a diversidade de oferta é tão grande e vinda de tanto sítio, que este viaja ao redor do mundo sem sair do quarto. Compra de lá merchandising e os primeiros projetos em formato digital pela simples vontade de ajudar os artistas que vai descobrindo. É diário o seu uso. O ecossistema cheio de mistérios constrói uma estrada infindável. Se hoje é um chato da música, muito deve ao Bandcamp.
Encontra na escrita uma paixão. Já acompanhava inúmeros outlets de escrita musical e é através da comunidade do AOTY e Bandcamp que faz mutuals – mais tarde transformados em amigos – que, indireta e diretamente, o guiam a projetos que o fazem trabalhar essa sua chama. Depois de escolhas académicas que o afastaram de si, coordena os estudos com a sua paixão e assume que quer fazer vida da cultura. Seja a escrever, a produzir, a promover ou a fazer curadoria, não interessa. Tem é de viver e fazer os outros viver cultura. Saltimbanco entre o cinema e a música, foi a última que o fez perceber a paixão que nutre por consumir arte e formar pensamento a partir dela. Olhando para trás, para os tempos dos snacks e dos refrigerantes, agora pensa-se no futuro, mas este continua assustador – bem mais assustador. Como termina a história deste indivíduo? Não se sabe. Ainda não se chegou lá e pelo andar da carruagem ainda deverá demorar bastante tempo.
“Foda-se”, exclamou, reagindo à notícia de que o Bandcamp teria sido (outra vez) vendido. Desta vez, não foi para uma empresa de videojogos, mas sim para uma empresa de licenciamento de música – que oportuno, não é? Claro que não augurava bom futuro, especialmente tendo em conta que a primeira venda tinha trazido inseguranças. Um segundo “Foda-se” é exclamado ao ver que os novos patrões da plataforma começaram logo a “trabalhar”, ao despedirem metade dos trabalhadores. A demoníaca sede do capital volta a imperar. As justificações – como se essas interessassem – são a típica lengalenga de que “eram necessários alguns ajustes para assegurar a sustentabilidade e saúde da empresa, de forma a poder servir a sua comunidade de artistas e fãs”. Como é evidente, a única coisa que se serve é os bolsos – e não, não são os bolsos dos artistas e da equipa criativa do Bandcamp que saíram pela porta das traseiras pontapeados no traseiro.
Fazer a vida a escrever sobre música é um sonho para muitos. Se o é, é muito provável que o Bandcamp tenha tido influência nessa melomania – tal como exemplificado no relato do indivíduo supracitado. Estes despedimentos não só são um ataque a toda a comunidade do Bandcamp – artistas, fãs, staff, etc. –, como também são um ataque severo à crença de quem quer fazer da difusão musical um ofício. Crença esta que, por este andar, prevalece desvanecendo. Numa sociedade à base de algoritmos, sucesso é dinheiro e este tem de ser feito por atalho. Lucro é mais importante que integridade e se não há lucro direto, que se tenha dois pés atrás. E que nem se toque em Portugal, que para exemplificar o porquê de se ter medo de envergar no jornalismo – já nem se fala do cultural, mas sim em todo o seu esplendor –, é exímio. Mas isso, seria outro artigo, atrelado à forma como se trata o setor da cultura – dia 9 de novembro é à frente da Assembleia.
Para embelezar e romantizar as coisas, poderíamos dizer inúmeros ditados portugueses que remetem ao que é fazer as coisas com amor pelo que se faz, seja a de quem nada e não se molha, ao corredor que não se cansa. Mas torna-se difícil. Será sempre frustrante saber que, por mais que se escreva por gosto, que se dinamize e que se trabalhe, o dia em que podemos fazer do que amamos vida pode nunca vir a chegar. Tantas histórias como as de cima acabarão com um desligar das paixões. Veremos como se safa esse indivíduo. Até lá, continuaremos. Pois, (ainda) aqui estamos e esperemos que isso não mude, apesar de tudo.