Uma história de boxeurs. De riscos, de fados, de sangue, suor, e lágrimas como nos melhores e mais fantásticos contos de fadas, de uma mitologia que é reinventada a cada geração para que seja mais bem compreendida por quem cá está e quem ainda está para vir.
Em 1998 não havia só Expo, não havia só Saramago, não havia só Ornatos. Não havia só a célebre batalha de bilheteira entre Mutantes e Zona J, e não era tudo mato como nos querem fazer crer. O Porto, que sempre se orgulhou de se atirar mais de cabeça quando o assunto é experimentação, fervilhava numa época pós-grunge meio desencantada em que as guitarras corriam o risco de ficar démodé e os DJs eram progressivamente aclamados como as novas superstars.
Eis que nesse cenário de despojos dum apocalipse rock anunciado surge aquele que é talvez um dos projectos mais (mal)bem-amados da invicta, lançando um impecável álbum de estreia que tinha tanto de aconchegante como de alienável. The Privilege of Making the Wrong Choice não é só “UNLO”. Ao longo de doze faixas duma fusão funk, indie, punk, e mais mil coisas numa mistura que quase se tornou num género por nome e direito próprio (um fenómeno confirmado dois anos mais tarde por Watch It Grow, primeiro e único álbum duns outros putos das redondezas chamados Feed), Rui Silva e companhia mostravam como se faz das tripas coração—e de tripas o pessoal do norte percebe bem.
Quem vem e atravessa o rio não se depara com a onda assim tão facilmente. De certa forma, o paradoxo do movimento reside precisamente em ser ao mesmo tempo hiper-regional e escandalosamente internacional. Quando se faz zoom-out, no entanto, o encaixe é perfeito. Mais do que perfeito—vanguardista, até. E sem ficar a dever absolutamente nada a possíveis ovnis estrangeiros que aterrassem numa lendária meca chamada Hard Club (o antigo), onde os próprios Zen gravariam um álbum ao vivo.
Mas todo o sol que brilha acima do Mondego tem o condão de ser ora escaldante ora de pouca dura, e os Zen não foram excepção. Agitaram enquanto deu, apertaram a cena ao limite, e forneceram uma espinha dorsal essencial para muito do que veio depois: durante a meia-dúzia de anos que se seguiu, é certo e sabido que toda e qualquer banda do Porto e arredores que pudesse ser vagamente definida como “alternativa” citaria Zen como influência. Nem que fosse só pela allure que esse name-dropping em específico conferia.
São vinte e cinco anos dum álbum singular na música portuguesa, de uma corrente eléctrica tão frequentemente arrumada na pilha generalista do “indie/alternativo” mas que na realidade carece de definição por pouco ou nada ter a que se comparar no panorama nacional. The Privilege of Making the Wrong Choice é um álbum que existe por si só mas que também não se esgota nele próprio, como todo o bom disco que se preze. Aliás, a verdadeira homenagem acontece quando muito do que nasceu posteriormente pode ser apontado como umbilicalmente ligado à fonte, mesmo (ou talvez principalmente) quando o nome dessa fonte por vezes nos escapa. Mas se há algo que aprendemos assim que nos atiram para a água e entre risos zombeteiros nos gritam “nada!”, é que a vida nunca é justa. A história, essa, cabe-nos a nós certificarmo-nos de que fica bem contada.