Miguel, como escreves um texto?

Há uns meses, numa noite de copos com uma amiga, esta questionou-me: “Miguel, qual é o teu método para escrever?”

Confuso, congelei durante meio segundo com a pergunta. Depois, a verbalização do pensamento inconsciente: “Nunca tinha pensado nisso, sabes?”

Novo compasso de espera. Nova verbalização de uma resposta simples para a enormidade da questão: “Acho que simplesmente escrevo”. Exceto que a resposta não era assim tão simples, claro. Passei a meia-hora seguinte a pensar alto sobre como iniciava, escrevia, e completava um texto. Quase todos os dias depois dessa conversa, mesmo que já não me lembre exatamente do que comuniquei (e se não me lembro, aposto que foi pão seboso), penso nisso. E acho que desde aí tenho tido este texto na algibeira para libertar num momento que sinto ser o certo. Não sei se é este o certo, mas apetecia-me escrever sobre o assunto.

Acho que a palavra “libertar” adapta-se bem àquilo que faço enquanto writer (acho que se tivesse de definir numa palavra o que faço, seria essa). Geralmente, escrevo praticamente todos os meus textos de uma assentada. Sento-me, abro um documento, bang, bang, bang nas teclas, boom, sai um texto. Depois, é tentar entender se o texto é bom. Enviá-lo aos amigos primeiro; depois ao editor atribuído àquele conjunto de palavras. Rezo que o feedback seja positivo dos primeiros – geralmente sim, e é construtivo –, rezo para que o segundo goste minimamente do que escrevi para manter viva a publicação. Há um misto de ansiedade e insegurança com concretização. Não há outra sensação que me entusiasme tanto como essa.

Detesto ler o que escrevi. Raramente o faço. Sei que isso é um sentimento comum a praticamente todos, mas dói-me efetivamente ler o que escrevi além do primeiro draft. Sinto que libertei algo de mim quando termino um texto e, à medida que desenvolvo o meu próprio estilo (que considero ter, simplesmente não o sei descrever), começo a ter noção extra do quê exatamente. Se escrevi um texto pessoal sobre Gótico Português, o mais recente disco dos Glockenwise, consigo perceber que o texto representa muito bem um momento disruptivo na relação que mantenho tanto com a minha terra natal como com a Lisboa que habito; se escrevi de forma mui-pessoal e melodramática sobre o concerto de Lorde na recém findada edição do Vodafone Paredes de Coura, tem muito a ver com a relação de fragilidade que encontro na música da artista e na qual me tenho sentido preso ultimamente; se escrevi que detesto o ano novo, se calhar detesto mesmo o ano novo. 

Por outras palavras, acho que todos os meus textos simbolizam um determinado momento na minha vida e representam algo que sentia nesse dado momento. Será isso algo egocêntrico? Talvez. Mas acredito que para escrever, partilhar a opinião sobre algo, mesmo que seja feito de forma vulnerável, é necessário algum egocentrismo para que esta seja entregue com confiança. É intrínseco e inato ao writer, mesmo que este não o queira admitir. Eu não quero admitir. Mas esse bichinho está lá.

Isto leva-me à razão pela qual me senti tão confuso com a pergunta da minha amiga sobre como escrevia um texto: nunca tinha pensado nisso a partir dessa perspetiva. Para entender como escrevo um texto, tenho de entender porque é que escrevo – e comecei a escrever – em primeiro lugar. 

Se fizer uma ponte entre a ideia de “libertar” e a ideia de que um texto representa um dado instante, a resposta à pergunta “Miguel, porque é que escreves?” ganha contornos nítidos na minha cabeça. Escrevo porque tenho de verbalizar sensações, emoções, comoções, que não consigo verbalizar no mundo real. E com isto, não estou a dizer que a escrita (ou pelo menos a minha) habita um universo não corpóreo e não real. Mas muitas vezes, não parece ser real. As palavras e frases surgem de forma espontânea, de um local que não sei bem de onde. Eu só as tento tornar bonitas e organizadas de forma a transmitir um dado sentimento. Acho que isso é o objetivo final. 

Se alguém se relacionar com o que fica debitado, melhor ainda. Mas isso é apenas um bónus. 

Escrevo porque preciso. Construo textos a partir de fragmentos de memórias e pensamentos que, quando conjugados, transmitem uma ideia, um sentimento, que tenta relacionar-se com o meu (e o nosso) instante atual. Localizado no tempo e espaço. É sempre pessoal. Se estou irritado, acredito que isso se note no texto; se estou feliz, tenho a certeza que isso também trespassa. Se é para sentir, pode – e deve ser escrito. É isso que quero fazer com a minha escrita. E, enfim, com a minha vida.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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